Vai melhorar, Bruno

Luduvicu
6 min readJul 2, 2021

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Luca (2021); Pixar

Este é um texto para você que nasceu em um mundo sem representatividade, sem ídolos abertamente gays e que recebiam amor por isso (e não apesar disso), sem ídolos LGBTQ que podiam ser falhos, sem uma aura mítica que pudesse compensar sua não-heteroafetividade, sem o amor homoafetivo como possibilidade, leve e duradouro. Este texto é voltado para você que precisou passar por um solitário processo de autodescoberta e autoaceitação antes de florescerer ao mundo. E cujo florescimento facilmente falha e você volta a se sentir o lixo falho e defeituoso que cresceu se sentindo. Que silencia seu Bruno (um trocadilho do filme Luca em que um dos personagens da nome à sua insegurança e habitualmente o manda se calar), mas as vezes a voz dele sai mais forte. Este é um texto para você que cresceu em um mundo que lhe dizia constantemente e de formas variadas que qualquer forma de amar que fugisse do heteronormoativo era uma aberração e seria coibido pela realidade (quantos filmes com casais LGBTQ em que um dos dois morria ao final?). E que até muito recentemente era essa a nossa realidade. Que cresceu em um mundo em que lhe dizia constantemente que você precisava se esconder, esconder quem você é, esconder como você é e que você precisa se proteger, ter um refúgio para sí de quem te cerca. Um refúgio seguro inclusive de quem você ama. Porque essas pessoas que te amam podem não te entender, podem te agredir e podem te renegar. E elas estão no direito delas, afinal você é distoante do mundo em que você surgiu e ousou crescrer. É para quem cresceu nesse mundo, com as proteções que precisou criar, inseguranças e medos que interiorizou, que eu escrevo este texto.

Luca, o novo filme da Pixar, é uma belíssima alegoria de como somos pegos de surpresa em nossa vida banal. Como conhecemos alguém que soa inofensivo a principio. Mas que não é. É extremamente perigoso. Que, sem nossa autorização, nos catapulta do nosso para o seu próprio universo e, mesmo sem saber como e se ficaremos seguros, nos tornamos curiosos em conhecê-lo. Alguém que entra em nosso íntimo, aponta para as rachaduras da nossa armadura e fala “vem, vem aqui fora brincar comigo”. Alguém que nos vê não por como nos apresentamos, mas por quem somos e também queremos ser. E que, quando não sabemos como ser quem desejamos, nos ajuda a descobrir como as coisas funcionam nesse outro mundo. Andar nesse novo universo é uma experiência inédita para quem achava que só podia nadar.

Alguém que nos diz, em atitudes, que nós não somos monstros, somos apenas um menino (que, no caso, não se conhece e não conhece o mundo o bastante pra entender que todo mundo se sente igual por dentro). Que nos desnuda de nossas próprias inseguranças, medos, e de nossa convicção acerca de nossas deformidades e do quão perigosos achamos ser, de sermos defeituosos. E que, ao nos despir de nosso medo constante de sermos descobertos, deixa claro o que realmente somos: extremamente humanos.

Luca é sobre ver humanidade no outro. E achar belo. Ter medo desse universo novo, de como nos sentimos expostos e também vulneráveis, mas ainda assim o visitamos, pois é lá que está essa pessoa e com ela nos sentimos seguros. E com ela podemos ter aventuras. Reconhecer o que agrada o outro e, por consequência, se agradar com isso.

Ver no que o outro almeja algo que você também almeja, mesmo sem entender especificamente o que faz daquilo algo tão desejável: seja isso uma viagem, um curso, um assunto, uma Vespa. E a partir disso, descobrir que a aventura de buscar algo em comum é o que torna esse novo universo tão confortável, a despeito de continuarmos sempre sempre sempre e sempre vulneráveis.

Ao procurar esse novo universo e entender que precisa esconder tudo de seus pais, o conhecer e se expor no novo mundo, seu amigo, suas aventuras, Luca acredita que sua mãe irá repreendê-lo por seguir esse caminho. Mas a verdade é que seus pais se preocupam com o quanto ele pode ser perseguido por ser diferente. E o procuram para trazê-lo de volta e, assim, protegê-lo.

Luca & Alberto

A despeito da admiração e desejo por estar próximo, a humanidade desse menino-monstro pode fazê-lo renegar o outro, expor o outro e até mesmo sentir ciumes do outro. Mas somos imaturos e novos nesse novo universo. Tudo aqui parece seguir uma lógica diferente de onde viviamos. E cada momento é um aprendizado novo, a partir de erros e acertos.

Essa história, entretanto, não é só do Luca, mas também de Alberto. Alberto parece livre, independente, mas é carente, abandonado pelo pai e isolado. É só com a intimidade e convivencia que Luca percebe que Alberto não é autossuficiente, mas sim extremamente só. E nessa relação ele ganha contorno e profundidade. Ele se vulnerabiliza também, sentindo ciumes e insegurança. É nessa relação que ele se expõe em prol da aventura e estabelece a conexão mais significativa desde que fora abandonado pelo pai. Construir sua vespa parece uma busca por construir algo que permaneça. E construí-la com o amigo é uma forma de fazê-lo permanecer. Ao término da aventura, quando cada um deve seguir seu caminho, a despedida deixa claro que cada um leva consigo um pouco do outro. Quando Luca percebe que Alberto não o acampanhará, ele se questiona "mas como eu saberei que você está bem? Eu não conseguirei seguir em frente sem você", ouvindo "você nunca está sem mim" de Alberto. Alberto entende o que Luca fez por ele – o tirou da solidão, o acompanhou na sua aventura, o tornou um cidadão do vilarejo que ele mesmo mostrou a Luca – ao dizer "Você me tirou da Ilha, Luca". Os dois seguirão seus caminhos levando o outro consigo em seu coração.

Independente de críticas sobre ser sutil demais e não deixar aberta a natureza do relacionamento entre os dois meninos-monstro, é inimaginável o impacto dessa história na geração de crianças e adolescentes LGBTQ que crescem nesse mundo onde uma bela história lhes diz que eles não não são monstros, não devem se esconder e potencialmente encontrarão alguém que lhes entenderá e com quem poderão ter cumplicidade e cuidado mútuo em suas jornadas, enquanto elas forem paralelas.

Duas senhoras-monstro resolvem exibir sua verdadeira forma para a comunidade ao perceber que os meninos foram aceitos

Uma história sobre a relação afetiva entre dois meninos que superam o preconceito, que não têm medo do carinho físico e que estimulam outros monstros mais velhos — que viviam de maneira sigilosa entre os moradores — a se abrirem é uma história sobre a autoaceitação do jovem que cresce nesse novo mundo, que não existia quando nascemos mas que ainda podemos usufruir e ajudar a torná-lo ainda melhor.

“Algumas pessoas nunca vão aceitar ele, mas outras pessoas vão. E ele parece saber encontrar essas pessoas”

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