Uma Vida Descomunal

Luduvicu
8 min readDec 15, 2022

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Do primeiro fêmur quebrado à questão do vínculo no Antropoceno

Alan Kurdi, refugiado sírio morto em seu caminho ao Paraíso almejado por seus pais

Em 2017, ao saber da assinatura da lei banindo a entrada nos EUA de muçulmanos de vários países, Hanya Yanagihara se questionou quem conta a história da América? Que vozes? E se a América que conhecemos não fosse fundada nos pilares do puritanismo? E se os homens fossem livres e também estimulados pra se amar, teríamos uma nação melhor? Ela seria melhor a quem? E acima de tudo, esse Paraíso que é a América, seria um paraíso para quem? Tendo essas perguntas em mente, ela começou a esboçar sua mais recente obra lançada. Se Uma Vida Pequena era um salto ao abismo, Ao Paraíso é uma escalada pra fora dele.

Ao Paraíso é um tríptico de tramas sem conexão clara entre elas — em comum eles ocorrem no mesmo universo ficcional e os protagonistas moram no mesmo casarão, em 1893, 1993, 2093— , que se passam nas Terras Livres, uma porção da América do Norte pós guerra civil onde os homens são livres e estimulados a casar entre sí (sim, isso mesmo). Entretanto, todos os indígenas foram dizimados, as mulheres possuem direitos a menos — a autora expõe de maneira bastante sútil a misoginia que permeia a humanidade em qualquer contexto ao remover a figura materna de todas as famílias refratadas nas três Eras — , os judeus não são bem vindos e os negros não tem direitos iguais. A America reimaginada continua sendo um paraíso de poucos. Para a autora, a mitologia da América como um paraíso estava errada esse tempo todo. Homenageando missionários americanos que foram para o Hawai (terra natal da familia de Yanagihara, refratada no livro como Hawai’i), as tramas acompanham vários Davids, vários Nathaniel’s e vários Charles (no último livro, Charlie, a primeira protagonista mulher de Hanya), como se a narrativa estivesse ancorada na teoria do Eterno Retorno. Nas três histórias a casa em Washington Square se torna a âncora geográfica de personagens que se lançam para longe dela — Lenu se alçando para fora de Napoles, na Tetralogia Napolitana; Ulisses se lançando ao Mar na Odisséia; etc — , buscando o seu próprio paraíso, a despeito de todas as adversidades e a despeito do que possa ser esse destino e o quão nebuloso ele seja.

O mote narrativo escolhido pela autora é o de que, independente da realidade e da nossa liberdade para vivê-la plenamente, sempre buscamos nosso Paraíso particular (nossos sonhos baseados na nossa educação sentimental, a liberdade, o amor e afeto alheio, a manutenção de nossa própria existência, a proteção de quem amamos). E nessa busca incessante, cometemos a mais variada gama de erros. Se, em entrevistas, Yanagihara já afirmou que a amizade é a mais pura forma de conexão humana, posto que você sempre pode escolhê-las ao contrário de casamentos ou familiares, nessa obra ela sucumbe à força protetora da familia, mesmo que não sanguínea. Se na primeira parte, o protagonista gay em busca de um amor que tem todos os indícios de ser uma ilusão resiste à proteção por seu avô não biológico e na segunda parte o menino gay havaiano foge de um pai vítima do messianismo nacionalista, a grande potência narrativa do livro encontra-se na porção final, uma trama que isoladamente já seria um classico. Tal é a magnitude do universo criado pela autora que se tem a impressão de que os dois primeiros segmentos foram apenas usados para aclimatar o leitor à idéia de que, se andavamos por uma America recriada e recontada, no terceiro livro adentramos numa America possível e para qual todos os eventos atuais apontam para essa realidade por ora fictícia.

A terceira parte do livro, que se passa em 2093, certamente constará no panteão de distopias que foram posteriormente copiadas pela própria realidade (1984, O Conto da Aia, Fahrenheit 451, Admirável Mundo Novo, Black Mirror, Brazil, etc). Extremamente verossímil, a história da America reimaginada transformada em um Estado ditatorial e opressivo em resposta às constantes tragédias climaticas e biológicas trazidas pelo Antropoceno, em que Nova York é dividida em zonas administrativas, e seus cidadãos são monitorados e limitados de movimento, recorrentemente golpeados por novas pandemias mortais ou por tragédias ambientais, é talvez a primeira grande distopia ambiental da literatura contemporânea. A grande distopia do ditatorialismo imposto pelo Antropoceno, este por sua vez criado pelo próprio homem.

“A Informação sempre dá um jeito de driblar as proibições”

Valendo-se de sua distinta habilidade de brincar com a própria estrutura narrativa, Yanagihara trabalha aqui com a passagem do tempo e evolução da trama na forma de cartas de apenas um remetente ao longo das décadas, com saltos temporais, narrativa em primeira pessoa intercalados com narrativa em terceira pessoa. O resultado é uma espécie de arqueologia do que aconteceu com o mundo imaginário nesses três séculos. Um panorama de como o antropoceno poderá moldar as relações sociais, deformar nossa capacidade e liberdade para formar vínculos e colocar em cheque nossa habilidade humana de cuidar do outro. Em um futuro em que a terra já devastada por cataclismas climáticos, onde o turismo já foi proibido a fim de evitar a proliferação de epidemias, em que o açucar não existe mais, em que os parques publicos foram substituido por crematórios e aterros sanitários para as grandes pandemias que agora são recorrentes, a grande pergunta é quem somos mediante a adversidade sem solução visível no horizonte, quem somos sob o colapso da civilização, quem somos e até onde vamos para cuidar de quem amamos. O que nos faz humanos? Se sobrevivermos, o que sobrará de nós e o que nos define?

Na natureza, se um animal quebra a perna/pata, morre. Fica suscetível a predadores, incapaz de fugir, não é capaz de caçar. Segundo aforismo atribuido a Margaret Mead, antropologa americana, um dos primeiros sinais de civilização humana é o fóssil de um fêmur quebrado e calcificado datado de 15 mil anos. Um fêmur quebrado e calcificado indica que outra pessoa se dedicou a cuidar desse humano fraturado, de alimentá-lo, movê-lo para um local seguro, protegê-lo de predadores e o acompanhou até que ele se recuperasse. Cuidado é indicativo de comunidade, civilização. Essa pessoa não foi abandonada à própria sorte. E ela teve a chance de sobreviver para acompanhar seu grupo, que não o abandonou. Um principio primordial civilizatório: o cuidado.

Na terceira parte do livro — já num futuro distópico, em que o totalitarismo não só se institui no governo das Terras Livres, mas no inconsciente coletivo e modificou a forma de se relacionar — dois personagens usam entre sí a alcunha de Naja e Mangusto. A escolha é explicada porque esses dois animais podem se matar, mas como seria muito trabalhoso e o resultado indefinido eles optam por se respeitar, se unir para proteger um ao outro dos demais animais da selva. Apesar da escolha, a anedota não se aplica aos personagens em questão. Um deles claramente é frágil, suscetível e está sendo cuidado de forma contínua por toda a comunidade.

Imagem da capa do livro, capturada da internet

A terceira história do livro é narrada, em parte, em primeira pessoa por Charlie, a primeira protagonista mulher de Yanagihara (precedida por um homem gay em Uma Vida Pequena e por um pedófilo em The People in the Trees, sem tradução no Brasil). A narrativa em primeira pessoa pela protagonista Charlie — que sobreviveu à doença pandemica na infância, com sequelas neurológicas — é intercalada com trocas epistolares entre seu avô Charles Griffith — um médico que se torna um cientista burocrata do governo ao inicio de uma de série de pandemias, auxiliando nas estratégias de contenção da transmissão e, indiretamente, nas medidas de restrição de direitos e mobilidade dos cidadãos, perpetuando um regime totalitário em nome da contenção da doença — e um amigo cujas réplicas não temos acesso e que não tem presença na narrativa de boa parte da história. O Artifício estilístico de ter uma protagonista narradora em primeira pessoa com severas restrições cognitivas e de habilidade social por sequela de um tratamento ineficaz não só ecoa o narrador Benjy de O Som e a Furia, de Faulkner, como também deixa claro que ela é uma narradora não confiável. Enquanto isso, a opção de nos atualizar dos eventos por meio de cartas remetidas a um personagem ausente da trama e apenas pressupondo o que ele respondeu antes ou depois dessa epístola, nos deixa a par da evolução da trama de forma quase retrospectiva, arqueológica. Ambas as opções artísticas, como Hanya faz muito bem, mantém uma certa distância sentimental e psicológica em relação a eventos muito brutais narrados de forma quase banal. O quebra cabeça dessa gangorra narrativa descreve, por fim, o esforço de um avô para salvar sua neta de um governo autoritário que ele mesmo ajudou a se formar, em um mundo que ele sabe que não fará mais parte. Um cuidado futuro.

Por um momento brevíssimo, eu fiquei feliz: fazia quanto tempo que o Nathaniel não me defendia assim, sem pensar duas vezes, com tanta veemência? Aquilo pareceu uma declaração de amor.

Se em Uma Vida Pequena Yanagihara nos apresentou um personagem aprisionado e acachapado por sua própria história e existência — fadado à tragédia –, em Ao Paraíso ela da vida a uma jovem que, apesar de ter sérias limitações de convívio social e cognição, ousa acreditar que ela merece liberdade e também a possibilidade de amor. De ser amada. De buscar o seu próprio Paraíso. Yanagihara nos lembra que, assim como os pais de Alan Kurdi, o ser humano se lança com seus diariamente às ondas do cotidiano em busca de algo que nem sempre sabemos nomear, mas acreditamos ser melhor. Que contém a promessa de algo melhor. E nessa busca, nos conectamos, comunhamos, sofremos, tomamos decisões ora acertadas ora completamente estapafúrdias e assim permanentemente contribuimos ao próprio caos do qual às vezes fugimos. Mas continuamos nossa busca, dia a dia, nesse mundo caótico, as vezes desesperançoso, recorrentemente opressivo. Nunca sabemos, ao nos jogar ao mar do acaso, se isso dará certo. Se chegaremos ao destino. Mas continuamos tentando. Até que cheguemos ao Paraíso.

“Mas por trás de todas essas preocupações e pequenas ansiedades está algo mais profundo: quem somos de verdade, nossa essência, o que vem à tona quando todo o resto foi embora. Aprendemos a adaptar essa pessoa sempre que possível, a ignorar quem sabemos que somos. Na maior parte do tempo a gente consegue. E esse é o único jeito: a gente finge pra não perder a sanidade. Mas todos nós sabemos quem somos, lá no fundo. Se sobrevivemos, é porque somos piores do que sempre imaginamos ser, não melhores. Na verdade, às vezes parece que todos que sobreviveram são aqueles que foram astutos, ardilosos ou traiçoeiros o suficiente para sobreviver. Sei que acreditar nisso também é uma forma de romantização, mas nos meus momentos mais extravagantes faz todo o sentido: somos os que ficaram para trás, os restos, os ratos, se engalfinhando por migalhas de comida podre, as pessoas que escolheram permanecer na Terra enquanto aquelas que eram melhores e mais espertas foram pra um outro lugar com o qual só nos resta sonhar, porque temos medo até de abrir a porta pra olhar lá dentro.”

AO PARAISO, Hannah Yanagihara

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