Uma ode a um amor incorpóreo

Luduvicu
8 min readJun 11, 2021

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Intervenção Urbana na lateral do Minhocão, foto publicada pela VejaSp no Twitter

Sempre me incomodou a impessoalidade e não nominação do ser amado nas artes audiovisuais, desde Aquele que era comparado a um dia de verão em Soneto XVIII de Shakespeare, até Aquele que ganhava uma música do Elton John só pra ele, em “Your Song” — se o mundo é tão maravilhoso enquanto Ele está nele, porque diabos não nomeá-lo? — , chegando ao “Eu sabia que você existia”, de Felipe Morozini. Essa grandiloquente expressão e verbalização do amor e desejo me soava sempre incompatível com o sigilo envolvido em quem é merecedor de tais homenagens.

"Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver."

SONETO XVIII, Shakespeare

Se na arte é assim, na Era em que todos são assessores de imagem de sí próprios nas redes sociais, sempre levando a si como uma empresa cujo networth é calculado pelo engajamento criado, em que todo lazer precisa ser capitalizado em visualizações que receberão engajamento unilateral e meramente catalogados como recebidos (um like para dizer “sim, eu vi seu foguinho ou coraçaozinho), ninguém ganha crédito na narrativa pessoal de ninguém até que essa pessoa seja finalmente citada, até que deixe de ser uma segunda taça em uma foto, deixe de ser um reflexo de canto, deixe de ser um fragmento de rosto em um story, deixe de ser o fotógrafo misterioso de fotos de uma viagem supostamente sozinho, deixe de ser o alvo de olhares a luz de vela, como o Cão semiafundado de Goya que perde seu foco em alguém fora da cena, mesmo sendo o protagonista do quadro. As vezes não passa disso, independente do tempo ou da profundidade do relacionamento, não ganhamos um nome nos créditos do espetáculo do outro, não somos apresentados, não viramos uma companhia publica. E cada um tem suas razões.

Cão semi-afundado (Perro semi-hundido), 1821–23; Goya

Tiramos a identidade dos alvos de nossas paixões, mesmo eles sendo o foco principal de nossa narrativa: na forma de um jantar a dois em um post, o link de musica publicada, uma indireta a qual um elenco de apoio poderá tomar para sí mas que não lhes cabe, o story que publicamos e nos pegamos vendo quem visualizou, sempre a espera de alguém em específico na lista. Essa não nomeação tem várias explicações, cada um tem o seu motivo.

Andrea Salvatori

Se essa impessoalidade soa problemática na composição e execução do amor, na finalização de uma paixão e no afastamento entre dois amantes, talvez soe lógico. Até mesmo terapêutico.

Andrea Salvatori

Quando nos afastamos de alguém que amamos— seja porque optamos por terminar o vinculo ou o término dele é imposto pelo outro ou pela inviabilidade reconhecida dessa relação — deixamos de nos relacionar e interagir com aquela pessoa e passamos a nos relacionar com sua ausência, com a idéia do outro, o fantasma interno que aprisionaremos e por quem seremos aprisionados (há liberdade para o vigia desse cativeiro?).

Passamos a nos relacionar com uma idéia. Esse fantasma. E ser assombrado por ele pode ser um processo extremamente doloroso, até a nossa libertação. Se é que um dia ela ocorrerá*.

“Qualquer processo de elaboração da perda passa por um processo de sequestro do outro que incorporamos no eu. Mas você só se apropriou de algo que já era seu e que você já tinha se apoiado no outro justamente porque aquilo já estava em você.” Maria Homem

Lidar com esse fantasma, principalmente participando de redes sociais, é uma construção diária dessa nova pessoa. Desse ser amado que precisa lentamente se tornar incorpóreo, até que não possa nos tocar e atingir. Até que por ele não tenhamos mais sentimentos ou, pelo menos, a ele fiquemos menos suscetíveis. Menos reativos.

Se em Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças Joel precisa acobertar Clementine em seu inconsciente — tornando-a parte de suas memórias prévias a ela mesma, confundindo a si mesmo para poder, ao fim desse processo, resgatá-la mesmo que na forma da concepção de mulher por quem poderia se apaixonar e, assim, buscá-la e poder reconquistá-la sem as bagagens emocionais do passado dos dois — , aqui o que cabe é algo mais dissociativo, aqui precisamos fragmentar as experiências em duas, o ser amado em dois. Para assim poder tornar plausível que uma unica pessoa possa ter trazido tanto prazer e também dor, sem tornar essa memória inverossímil e sem invalidar nenhuma experiência. Sem colocar os sentimentos prévios sob escrutínio. Assim o fez Nawal, a protagonista de Incendios, para possibilitar amar, desprezar e sentir medo da mesma pessoa. E assim o fazemos para poder esquecer o sentimento, sem renegar os bons momentos ou recusar a sí mesmo o afeto recebido.

1 + 1 pode ser 1 ?

Em seu "His Song", Pitou diz "Eu lhe dou esta canção, pois quero esquecer minha memória de você, mas não quero que a memória seja esquecida. Por isso canto estas palavras como se fossem sobre outra pessoa. Eu falarei dele, em vez de você, e farei de conta que as linhas desta canção sempre estiveram aqui". E a partir desse momento que falamos de outro, que não é Ele, mas a idéia dele. Que se tornará mais incorpóreo a medida que o tempo passa. E cada vez mais um fantasma dentro de nós. Fantasma esse que irá se tornar, um dia, livre. Nos deixando livres.

E nesse processo de luto em que protegemos uma parte desse objeto de afeto ao mesmo tempo que buscamos cada vez mais dissociar aquele que nos trouxe dor e abandono, a dor se torna nosso navio e o desejo latente a nossa bússola. E nisso se confunde o processo de buscar o outro em sua atuação social, em publicações, em sinais, em notícias por terceiros ao mesmo tempo em que queremos esquecer, em que buscamos nos afastar da ausência de quem nos relacionávamos. Esse processo é extremamente contraditório, doloroso e, muitas vezes autopunitivo ao vermos, à distância, que esse outro dá sinais de nos esquecer, de nos superar, de sofrer ou de já estar bem quando nós continuamos chafurdando nesse pântano emocional. Lembrando que o que vemos a distância é sempre uma sombra, a luz trêmula de uma chama, uma bandeira à distância que flamula nas ondas da rotina vista ao longe. Nesse processo esquizofrenico de repelir e ao mesmo tempo manter pulsante o interesse pelo outro, a memória se torna um fardo. Mas sem ela, é claro, perdemos nossas idiossincrasias, deixamos de ser quem somos, nos tornamos insustentavelmente leves e pedestres. E aí começamos esse contrabando de sinais, signos e movimentos, misturando o que encontramos no caminho com memórias, tomando conclusões próprias que moldarão esse novo individuo de quem falaremos para não falar do nosso objeto de amor real. E conclusões que ora nos ajudarão a seguir em frente, ora nos farão sofrer como se novamente passando pelo processo de perda e abandono. De quem criaremos repúdio para não desprezar o verdadeiro co-criador de nossas memórias agradáveis.

O álcool, as madrugadas, o despeito, a saudade, o desejo, tudo é ingrediente para essa pátina sentimental com a qual vamos cobrindo o muro de nossa antiga paixão. Mas devemos sempre nos policiar para somente interagirmos com esse prisioneiro de nós mesmos, nunca aquele que anda livre por aí. Que ousou nos deixar e cujo cronograma de sua propria dissociação e impessoalização do amor é completamente dissociado do nosso e cuja evolução do processo nos é desconhecida. Caso contrário você pode perder todo o processo.

Carta ao Algoz

Ao fim de Incêndios, Nawal endereça uma carta ao pai e uma ao filho. Ao Algoz e ao abandonado. Ao primeiro ela diz "em breve você irá se calar" e ao segundo "nada é mais bonito do que estar junto". Ela não está sendo incongruente em seu desejo. Agora 1 + 1 é igual a 1.

Carta ao abandonado

E assim o fazemos com nosso amor perdido, agora dissociado e despersonalizado. Incorpóreo. Um deles, o algoz, deixaremos pelo caminho sem direito a nos acessar ou nos machucar novamente e o outro, o abandonado, guardaremos com carinho em um canto de nossa memória para, eventualmente relembrá-lo sem o risco de ficar preso a ele novamente.

"Eu posso mudar minhas palavras, posso encobri-las mas em cada canto dos pássaros eu ouvirei sua canção, cada som irá englobar essas palavras. Eu sei, eu sei: não há nenhum pássaro que possa se comparar a ele" PITOU, His Song

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P.S.: Acima citei que ser assombrado por esse fantasma de quem ainda guardamos algum afeto pode ser um processo extremamente doloroso, até a nossa libertação, se é que um dia ela ocorrerá.

Lembro do meu pai, um homem criado sem a habilidade de se comunicar. Taciturno, rabugento e melancolico, que um dia disse a mim "fui criado numa familia que não fala. Se você não fala, ninguém sabe o que se passa contigo". Cheio de problemas e defeitos, apesar de ter abandonado, pareceu sempre amar minha mãe. Carregado de inconsistências, um dia levantou a mão a ela. Ela não aceitou essa nova dinâmica, o expulsou de casa e de sua vida. Ele nunca mais se relacionou de maneira firme com mais ninguém. Em reuniões familiares, sempre que desinibido pelo alcool a rodeava, tecia elogios e amorosidades a ela. Nunca mais foi retribuido. Ele se tornou um amor incorpóreo a ela. Por uma ironia do destino, talvez seu próprio desejo romantico, trinta anos depois de se separarem, ele morreu nos braços dela, finalmente recebendo afeto de quem amou por todo esse tempo. Ele ai, talvez, fora finalmente libertado.

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