Alguns eventos pelos quais passamos, precisamos bloquear de alguma maneira, desde simplesmente esquecer até ignorar, ou deixar no ponto cego da nossa visão. Periferalizar. Porque lidar com eles é doloroso demais, nos impede de continuar andando firmemente ou, pior, exige uma resposta imediata. Resposta essa que, às vezes, não estamos dispostos mas também não estamos aptos a dar.
Seja por falar no assunto relacionado, seja por evocação em terapia, seja porque simplesmente a mente achar que era momento de lidar com ele, eventualmente esses eventos reaparecem. Esses traumas fistulizam, essas feridas supuram. E precisamos lidar com eles, como a protagonista de Mare of Easttown, no último episódio, que resolve revisitar o sótão onde encontrou seu filho enforcado. Um lugar fechado há meses, não visitado por ninguém e cuja existência ela optou por ignorar.
Então procuremos nosso sótão.
Na infância sempre fui marcado pelo medo do abandono, antes mesmo de ter léxico sentimental para definir essa palavra. A ausência do meu pai sempre foi a tonica das minhas memórias, com muita coisa vaga e eventos soltos no fichario mnemônico. Em contrapartida, a presença de uma mãe inconstante, hipomaniaca, que precisava fazer turnos longos para manter a casa e voltava cansada e sem paciência para uma criança ávida por atenção e afeto, talvez tenha tido maior impacto nesse medo constante. Minha mãe sempre teve traços almodovarianos em seu pior, agia ao rompante, oscilava entre a apatia do cansaço e o empoderamento da demanda por autosatisfação, que se via solteira com um filho que era ora uma âncora que a impedia de ter sua vida plena e livre e ora era a fonte do amor que ela poderia receber incondicionalmente. Alguns dias chegava em casa irritada e gritando por qualquer pequena frustração, outros chegava amorosa pedindo abraços e dizendo amar seu filho. E isso confunde uma criança com o seu senso de confiança e segurança em formação. E não precisa conhecer a fundo a obra de Kohut para imaginar o quanto isso molda a maneira como essa criança vai lidar com o mundo, com suas frustrações no futuro e como ela irá performar o afeto. A questão do espelhamento, idealização e semelhança essencial.
Meus pais se separaram quando eu tinha menos de 6 anos, a família da minha mãe morava em outro estado. Minha mãe precisava trabalhar MUITO (as vezes até em rotinas de 24h ou mais) e complementar a renda com venda de produtos do Paraguai — era habitual eu ganhar algo de presente e dias depois ouvir “a mãe vai ter que vender, mês que vem te dá outro”. E nunca vinha, talvez venha dai meu completo desprendimento com objetos — e a minha avó materna sugeriu cobrar para me cuidar. A solução encontrada pela minha mãe: me deixar trancado em casa. Ela sempre reforçava que não podia mexer no fogão, abrir a porta para estranhos, deixava a comida pronta na mesa, TV (de tubo, pesada) ligada e já sintonizado na Xuxa. Mas no fim era isso: ir com o coração na mão e esperar encontrar a casa no lugar e o filho vivo ao voltar. Essa situação pode parecer inócua (não parece, eu sei), mas do ponto de vista da criança é o que se assemelhava a um cárcere, em que eu passava o dia sem contato humano, entediado e obrigado à autossuficiência, aguardando o unico humano da minha convivência, que chegaria com sabe-se lá qual humor e eu precisaria sempre ser continente a ele, me adaptando para que o sofrimento fosse o menor.
Quando eu tinha 6 anos, para não pagar pensão, meu pai me convenceu a ir morar com ele em outra cidade. Fui pois ludibriável e mamãe era uma figura assustadora e pouco acolhedora pra mim. Ele me abandonou emocional e funcionalmente à irmã que, seis meses depois, viu que não tinha viabilidade essa dinâmica e me devolveu pra minha mãe. E por devolveu foi devolveu mesmo. Pegou o ônibus pra outra cidade comigo, bateu na porta da minha mãe e devolveu sem que meu pai tivesse o direito (não tinha mesmo) de participar da decisão. Foi curto período que, retrospectivamente, me marcou pro resto da vida, pra bom (tive a sensação de ter irmãos, vida de criança de bairro, ambiente familiar, casa sempre cheia) e pro ruim (sensação de desconexão, abuso sexual por um primo mais velho, etc). Ao voltar pra casa passei anos sendo acusado do abandono e detrimento dela, por uma promessa de paternidade(a questão do espelhamento na formação do Eu acende um alarme aqui).
Logo a dinâmica retornou ao habitual. A ausência materna pelas demandas do trabalho me tornaram uma criança sem regras, sem horários e sem vinculos firmes. Aos sete eu resolvia faltar aula para ir andar no zoologico, aos oito eu varava a noite para assistir “Pássaros” no Corujão e dormir ao ver o sinal de encerramento da transmissão da Globo, aos 9 eu desenvolvi uma anemia carencial severa por habitos alimentares movidos pela pura busca da satisfação gustativa de uma criança.
Aos nove veio a primeira noção de que, a dada sua excessiva humanidade, minha mãe não era um ser mítico e eterno. Pela demanda de trabalho, as agruras da vida (o que retrospectivamente eu acredito que foi uma nodulectomia e quimioterapia) e rotina excruciante, minha mãe desenvolveu o que, novamente, retrospectivamente, acredito que foi burnout. De se tornar cada vez mais irritada e ainda mais instável, incongruente e esquecida, ela começou a ser encontrada por vizinhos do prédio nas redondezas, sentada na calçada sem saber como chegar em casa. Disso, evoluiu para ela passar dias dormindo. E eu, sempre ao lado, assistindo algo e cuidando dela sem saber como. Apenas estando presente e me certificando que ela faria as funções básicas da vida diária.
Nesse período eu conheci o que possivelmente foram meus primeiros amigos, os gêmeos Diego e Daniel, do prédio do outro lado da rua. Minha leitura deles era, tal qual Lenú com Lila, de medo da inadequação, fascinação e admiração pois, apesar de completos antagonistas, eles tinha cumplicidade e cuidado mútuo. Juntos desbravávamos o perímetro urbano de uma quadra e meia de nossas casas. Ao mesmo tempo que isso tudo parecia uma aventura, parecia também uma traição à mãe que acreditava que eu estava em casa o tempo todo (novamente, a questão do cárcere). No meu aniversário de onze anos lá estavam eles, como meus convidados, nós três cercados apenas por adultos. O processo de afastamento deles eu não consigo lembrar como se deu, mas não creio que foi traumático pois até hoje guardo boas lembranças desse vínculo em que eu sempre circunvizinhei um universo próprio deles.
Aos treze conheci Eliel, o irmão mais novo da vizinha de porta, de quem me tornei próximo, apesar dele ser uns quatro anos mais velho que eu. A proximidade fez algumas fronteiras se perderem e ele começou a usar minha dedicação e atenção para a sexualização desse vinculo. Diferente de quando meu primo buscou me usar, dessa vez eu tinha interesse na troca, sempre limitada. A culpa era acompanhada de certa curiosidade. E dessa dinamica que me pareceu cumplicidade, no apice da adolescencia, logo veio a revolta pueril. E nisso o inicio do confrontamento à figura materna. E a primeira surra. Sem saber o conteudo, percebendo ser Eliel a fonte de meu empoderamento adolescente, essa amizade logo foi interrompida. E aí veio minha primeira convicção de que essa vida era inviável, por sí. E planejei minha fuga, da maneira menos estruturada e mais infantil possível.
Pretendia simplesmente fugir daquela casa, daquele lar disfuncional, daquela mãe ausente e, ao mesmo tempo, excessivamente presente. Por motivos óbvios, a fuga não foi bem planejada, não durou mais que um dia e ao ser trazido de volta para casa, lembro de encontrar minha mãe dormindo e ela me dizer num misto de ira e de subserviência que eu “não fizesse mais isso”, como o pai de David (em O Quarto de Giovanni) que implorava ao filho que se cuidasse, pois só tinha a ele.
O resto da adolescência foi marcado pela mesma inconstância, rompantes de empoderamento egolatra e a sempre ameaça do abandono, dizendo sempre que irritada que eventualmente desapareceria e cuidaria de sí apenas(sim, essa frase trágica vai voltar a frente, dessa vez como farsa). Hoje, com 36 anos, entendo que essas ameaças eram mais um pedido de socorro que um abandono em si. Uma criança, um adolescente, não entende isso. E se deforma com esse medo constante.
O Livro que inspira a esse texto é do vietnamita Ocean Vuong. O protagonista e narrador, chamado de Cachorrinho pela mãe e avó, é o unico letrado da familia. Aproveitando que não será lido, compreendido por sua mãe (uma espécie de anonimato do autor), se expõe escrevendo uma grande carta à sua mãe, expondo o quanto ela foi violenta na sua formação, pouco afetuosa e o quanto o moldou. Mas apesar de a expor por quem é e como é, ele é sempre elogioso, grato e usa um tom de homenagem. Em momento algum ele a julga abertamente, sempre adota um tom de empatia para essa mulher moldada pelo trauma da guerra e da terra natal.
A vida é uma grande representação e repetição de nossa propria vida e de nossos antepassados. E nossos pais ficam nessa de não terem condições ou treinamento para olhar de longe. E se culpam por coisas que nem são deles e apenas passam a frente. E se a gente não compreende, passa pra frente também. A gente passa a vida tentando dar forma a algo, mas sempre da mesma argila que a familia já vem reaproveitando há gerações. E nele todo o resíduo de gerações. Inclusive das faltas.
Minha mãe nasceu a mais velha de três irmãos. Foi deixada com sua avó, após a mãe, também inconstante, hipomaniaca e que agia aos rompantes, se casar novamente e resolver que ela não poderia fazer parte da sua nova familia. Filha de um homem chamado Francisco, de traços não europeus, cabelos escuros e lábios grossos, ela era a Negrinha. Francisco permaneceu ausente durante toda a vida dela. Minha mãe, a Negrinha, foi criada com frieza por sua avó e sua tia, ambas loiras, descendentes de poloneses. Negrinha não teve afeto materno, não teve proteção. Na minha infância ela contava rindo, como uma anedota digna de almoço de domingo, que quando chegavam visitas, ela era mandada para o quarto, pois era negrinha. Minha mãe é branca, de pele clara. Ela apenas teve o infortúnio de ter cabelos pretos em meio à familia loira e racista. Minha mãe saiu da casa da avó aos 16 anos, migrou para o Paraná, onde trabalhava como representante de vendas de uma marca de café em Foz do Iguaçu. Lá conheceu meu pai, a quem ela acreditou que conseguiria criar uma familia e, finalmente, dar nova forma a essa argila defeituosa e cheia de resíduos que lhe fora entregue na infância.
Não conseguiu. Após eu nascer meu pai rapidamente demonstrou ser inapto, insuficiente e fraco. Nos abandonou quando a realidade se impos e a vida sendo pai e não mais filho se mostrou dificil. Foi para a casa dos pais, em outro estado, e nos deixou para trás. Negrinha, que não tinha outro lugar no mundo, que não tinha familia a que se reconfortar, que não tinha outra opção, resolveu ir atrás dele. Comigo, foi para o Mato grosso, onde meus avós e meu pai viviam em bonança, disse que ele era o marido dela e que ele deveria voltar com ela para, juntos, criarem seu filho.
Force Majeure (2015)
Negrinha esperou demais de alguém que já demonstrou ser incapaz e autocentrado, como o protagonista de Force Majeure, que deixa a familia pra trás e foge ao ver o que parecia ser uma avalanche que os engolfaria. E com isso foi emasculado e deixou de ser um idolo aos filhos. E homens insuficientes são assim, insuficientes, emasculados, incompetentes. Inclusive para reconhecerem sua insuficiência e dizer que não, que não serão essa figura esperada deles pois não são capazes e compreender não serem ou não estarem dispostos a ser.
Mas homens insuficientes serão assim, independente da exigência que se faça deles. E meu pai voltou. E meu pai foi unsuficiente. E logo o alcoolismo se instalou. E ele rapidamente virou um fardo à Negrinha, que trabalhava o dia todo para manter a casa. Até que certo dia, em uma reunião familiar que eu presenciei, meu Pai, demonstrando imenso descuido e desamor com Negrinha, levantou a mão e ameaçou agredí-la. Como alguém vinda de uma casa onde já era agredida de diferentes maneiras e de onde fugiu, ela não admitiu que essa se tornasse novamente a realidade dela. O expulsou de casa e do coração dela. Como um tipico homem insuficiente, ele se recolheu à sua propria existência insuficiente, a abandonando e quiça adotando medidas para demonstrar a ela que sua vida sem ele seria mais difícil. E assim foi. Ele seguiu com sua vida profissional, onde cresceu. Mas continuou insuficiente.
A verdade é que meu pai foi unsuficiente consigo. Ele sempre amou minha mãe, continou amando ela mesmo depois de descuidá-la e de ser expulso por ela de seu coração. E isso o afetou. Sempre manteve uma relação de medo e desejo por ela. E nunca mais foi feliz.
Eu realmente não sei o quanto era simplesmente desinteressado ou o quanto aquele menino que parecia uma folha mimeografada da mulher que ele não foi capaz de manter, mas a verdade é que ele nunca manteve qualquer conexão comigo. E nunca tentou. E nunca se abriu. Ele se manteve a mercê do alcoolismo, fraco e distante. A questão é que um menino de cinco, seis, oito, doze, quinze anos de idade esteve sempre ali, disponivel, disposto, interessado e pedindo atenção.
Se minha mãe manteve sempre acesa em mim a angústia do abandono iminente, meu pai solidificou isso.
Aqui chegamos ao sótão.
O que me talvez tenha me deformado tanto, é que ele não era distante ou incapaz de ser afetuoso. Ele era distante e incapaz de ser afetuoso comigo. Porque meu pai era o tio preferido de todos os meus primos, cuidadoso, brincalhão e preocupado. Uma cena que resgatei há alguns anos em terapia, resultando em minutos de catatonia e incredulidade, é de meu pai alcoolizado, na minha frente, segurando meu primo e o chamando de filho. Eu, com sete anos de idade, parado, impassível, um papel em branco pedindo pela assinatura dele, vendo ele chamar outro de filho. Pegar outro no colo.
Fazer algo diferente com essa argila que herdamos. A gente não pode mudar o passado, mas pode compreendê-lo e com isso, talvez, estruturar um futuro sólido e seguro. Satisfatório. Quebrar ciclos nesse momento talvez seja melhor para deixar de fazer parte do inferno constante que nos cerca. Nas palavras de ítalo Calvino, precisamos parar e entender o que e quem não é o Inferno que nos cerca. Depois que as coisas (pessoas, confiança, segurança, etc) se perdem, é tarde demais. E infelizmente essa cena me estraçalhou. E infelizmente a ela sou extremamente reativo. E infelizmente sou colocado nela toda vez que me sinto abandonado e testemunhando quem amo dando atenção e afeto a outro enquanto me nega essa mesma atenção e afeto. E eu não sou ciumento ou possessivo, mas se me falta e vejo ser dado a outro, eu me torno um animal primitivo, instintivo. Eu repito os ciclos do meu pai, eu repito o ciclo de Negrinha. Eu repito meu proprio ciclo, me vendo novamente em pé vendo meu pai chamar a outros de filho. E eu me vejo triste. E eu me vejo inconsolável. Não é aceitável a dor nessa situação. Ela não é crível nem mesmo para mim. E não é o insight, o conhecimento dessa dinamica e mecanismo, que me impedem de ser colocado nessa situação, revivê-la e como se experimentando um transtorno de estresse pós traumático, me ver sofrendo novamente tudo isso e reagindo de maneira infantil a tudo isso. E perdendo a objetividade. E toda e qualquer pessoa que me deu amor, afeto e atenção e optou por sair da minha vida de maneira descuidada e dando atenção e afeto a outros ao alcance dos meus olhos me colocaram nessa situação e nessa situação me vi instintivo. E eu não quero me sentir assim, não quero agir assim, não quero passar por isso novamente. E nunca teve cuidado, nunca teve a compreensão de que algo estava desproporcionalmente errado aqui e o retorno cuidadoso. E não terá. E alguém se se sente inseguro e sozinho, se protege como pode. Principalmente de quem o machuca.
“Closure is often a fantasy within itself, this idea that with the right amount of therapy and hard work we can put our traumas behind us. That there is some point on the horizon that marks when we are no longer bound by the traumas of our lives.”
Michaela Coel, sobre o trauma do abuso que tentou apaziguar escrevendo I May Destroy You
Aqui é o momento do sotão novamente.
No inicio desse texto, citei de maneira pedestre duas situações de abuso sexual. Primeiro por um primo, depois por um amigo mais velho. E isso não foi pedestre, não foi banal. Isso foi brutal. A questão é que eu joguei pra dentro de um baú dentro do próprio armário para seguir vivendo. A verdade é que eu tinha ninguém para confidenciar e pedir ajuda. A realidade é que eu me sentia culpado por isso. Tinha a angustia de que pudesse ter causado, atraido e, quiça, estimulado isso. Da primeira vez havia medo pois eu estava a mercê de um dos moradores da casa onde estava hospedado, da segunda vez havia culpa pois eu queria manter esse vinculo que se embaçava pela demanda sexual. Pois era o único vinculo. Algo que se repetiria no resto da vida, buscar manter o vinculo mesmo que incomodo ou insatisfatório. Em ambas as situações eu me sentia sujo. Em ambas eu me sentia pecaminoso e sozinho. Irremediavelmente sozinho. Porque nessas duas situações eu me via desprotegido, abandonado a propria sorte do mundo. E assim era. E nessas duas situações eu entendi que eu precisava proteger a mim pois ninguém mais o faria. E com isso, eu me fechei. E joguei essas duas situações para a periferia e ali deixei. E a verdade é que reneguei minha sexualidade até onde foi possível. Não era uma questão de reprimir a homossexualidade, mas sim a sexualidade como um todo. Passei pela adolescência incolume, boa parte da faculdade sem qualquer desejo externalizado ou focado em outro, apesar de o sentir. Pra tirar esse baú do armário foi necessário abrir o armário, novamente me aceitar, me reconhecer. Minha autodescoberta foi tardia mas não parecia ter criado grandes traumas de funcionamento. Ou foi o que achava. Nunca me permiti me colocar no lugar daquele menino de seis anos assustado e se sentindo sem proteção. O que ele deve ter sentido e as estratégias inconscientes que adotou para agradar o abusador e, assim, não ser agredido mas também não ser novamente abandonado. E a disfuncionalidade disso. Reconhecer o trauma é o primeiro passo para ver, a partir dele, que vias tortuosas criamos para evitar acessá-lo. E reconhecer essas vias agora é comigo. Perceber que ando por elas e voltar à via principal. Não admitir companhias descuidadas no percurso. Preciso cuidar desse menino. Enquanto cuido dele, eu me cuido.
Parte do amadurecimento do adulto LGBT que se distanciou dos pais para viver sua plenitude é entender que você não precisa amar seus pais. Mas que você pode. Eu não tenho mágoas ou rancor de meus pais. Essa não será a história do menino de Cafarnaum. Eu tenho plena ciência que minha mãe fez o que pode para, coma argila que lhe foi dada, fazer algo melhor, dar o afeto que ela não recebeu, criar um mundo melhor e mais seguro que lhe foi proporcionado. Do meu pai não guardo raiva pois ele carregou pra debaixo da terra suas próprias faltas e decepções. Ele se privou da paternidade e do que descobriu tarde demais o que lhe era necessário.
Com esse texto eu quero dizer a mim mesmo e ao universo que não quero mais isso. Não quero mais essa repetição de ciclos, esse eterno moldar a argila defeituosa deixada pela minha ascendência e, principalmente, não quero mais lidar com essas relações descuidadas comigo. Nao quero estar numa meia relação porque a prioridade do outro é sexo ou a mera companhia e cuidado que proporciono. Eu não quero mais ser colocado nesse espaço de abandono e descuido e me sentir novamente uma criança apavorada. E sofrer por algo ou alguém que já não está mais ali. Se é que um dia esteve.
Como diz a protagonista de I May Destroy you ao seu abusador, quando ele afirma que pode ficar ali por ela:
- I’m not going to go unless you tell me to
- Go
- Ok
De uma maneira um pouco dolorosa, tentando perceber os caminhos tortuosos que adotei para evitar confrontar esse trauma do abuso, percebi que, na situação de abuso, estava sendo usado pelo que poderia prover, sem respeito ou consideração a mim. Afinal, um abuso. E que eu era deixado de lado, após a satisfação adquirida. E isso, além do medo e angústia, ampliava a minha sensação basal de abandono. E de estar só. E de ser usado.
Certa vez li que crianças vítimas de abuso podem interiorizar esse trauma se tornando, de maneira inconsciente, mais sensualizadas, como se barganhassem seu corpo em troca de afeto, pois foram ensinadas que essa é uma via para receber atenção, cuidado e afeto. Me questiono o quanto interiorizei isso em minha formação. A quantidade de relações de amizade em seus variados graus de intimidade que se iniciaram pela relação sexual ou pelo condão da sexualidade, me escapam. Muitas vezes nem havia interesse ou desejo da minha parte, havia apenas a disponibilidade em troca do interesse e atenção alheio. Inumeras vezes que gostaria apenas de ter a troca da comunicação e tolerei a sexualização, buscando manter esse vinculo. E muitas vezes, quando me desvencilhei dessa dinamica, porque o outro a interrompia ou era de comum acordo, vinha o alívio. Seja por não ter de estar disponível, seja por não haver mais essa expectativa da minha parte. Não, não há qualquer piedade ao analisar isso.
E essa tendência se repetia dentro das relações sentimentais. Certa vez comentei com uma amiga, que também é terapeuta, que sinto prazer vendo que o outro sente prazer. Um sorriso de canto se esboçou, seguido do comentário de que essa questão era valida de ser explorada. Nunca fora, nunca se demonstrou prejudicial a mim. Mas era isso. A satisfação interna de dar prazer ao outro para, assim, manter sua atenção e desejo. De uma maneira quase barganhando inconscientemente. Além disso, havia um certo incomodo e culpa quando o outro se dedicava ao meu prazer, mesmo com a insatisfação e queixa quando essa dedicação inexistia depois da intimidade instituida. E incomodava. A disposição em ensinar o outro, em aprender o tempo do outro, em aprender com o outro o ritmo de ambos, em descobrir o corpo do outro e aprender com o outro novas formas de sentir prazer. Após o platô da descoberta, surgia a resistência do outro em aprender novas formas, a indisposição do outro de fazer algo além do movimento basico que buscava apenas o climax próprio. Não que não fosse bom, não que não melhorasse, mas logo o ato se tornava unilateral. E nesse platô, completamente banal e esperado em uma relação, porém com certo desdém, vinha a sensação de estar a mercê do outro e seu desejo, sem ser procurado. E com isso, a falta da sensação de ser desejado. Acompanhado, a sensação de ser usado. E isso habitualmente acontecia antes do abandono. E nesse abandono descuidado, sempre descuidado, autocentrado, vinha a sensação de descuido, de ter sido usado. Essa saída, quando não estava disposta ou interessada, me colocava nesse mesmo lugar que já estive. E isso me criava revolta. E nisso eu me tornava agressivo, reativo. E nisso eu pegava o tijolo a que James Baldwin se refere em O Quarto de Giovanni.
“Ele se pôs de pé, no centro do quarto, debaixo da lâmpada, olhando para mim. Também me pus de pé, com um meio sorriso, mas, ao mesmo tempo, de algum modo estranho e obscuro, um pouco amedrontado. “Viens m’embrasser”, ele pediu. Eu tinha a nítida consciência de que Giovanni estava segurando um tijolo, de que eu também estava segurando um tijolo. Por um momento, tive a sensação de que, se não me aproximasse dele, usaríamos os tijolos para nos atacarmos até a morte. E no entanto não conseguia me mexer de imediato. Nós nos entreolhavamos separados por um espaço estreito cheio de perígos, que quase sempre parecia rugir, como uma labareda. “Vem”, Giovanni disse. Larguei meu tijolo e fui até ele. Logo em seguida, ouvi o outro tijolo caindo no chão.”
A questão é a hiperreatividade que se instala. De reviver um trauma. De não querer reviver esse trauma. E de ser colocado nessa posição pelo descuido alheio.
E eu sempre senti isso? Tive essa hiperreatividade? Em todos os terminos fui colocado nesse local? Me tornei agressivo com quem eu amava? Não, foram apenas duas vezes. O primeiro namorado, de maneira extremamente cuidadosa, desistiu. E ao desistir, me disse com todas as palavras “não te amo mais, não quero mais tentar, não quero mais seguir na sua vida”. E sumiu. E nunca mais reapareceu. E não permitiu que eu o orbitasse. Nas outras duas vezes não ocorreu cuidado. Em nenhuma dessas vezes teve a leitura de que aquela cena que se descortinava a sua frente fazia menção a eventos alheios. Em nenhuma dessas situações teve a leitura de dizer Largue este tijolo e venha a mim. Eu gosto de você e não quero que lutemos. Eu entendo que você está fragilizado e procurando se proteger, mas não é de mim. É de você mesmo. É do seu passado. E assim eu fui culpabilizado. Eu fui encarregado do fim. Me foi colocado como quem sepultou as possibilidades, que já estavam mortas. Que já foram deixadas morrer previamente. Mas essas duas vezes, eles continuaram me orbitando, continuaram deixando exposta sua busca por outros e sua suposta superação escondendo sua dor. E nisso me sentia ainda mais usado e minha revolta instintiva estava sempre acompanhando a dor da falta. E quando eles voltavam, não era para me cuidar ou simplesmente buscar ajudar nesse sofrimento. Era por faltas proprias, incapacidade de seguir em frente mas sem o desejo de reparar os danos deixados no percurso. E obviamente a sensação de ser usado. E essa constação nem pressupõe que havia alguma obrigação ou dever dessa constatação do problema pelo outro e tentativa de contenção. Há apenas a triste constatação de que a falta de cuidado me colocou nesse lugar e me manteve ali. Até que eu precisei me cuidar e sair dali sozinho.
E quando sai, me centrei, estava pronto para não ser reativo, já não tinha mais ninguém ali.