Recordar, repetir e elaborar

Luduvicu
4 min readMay 3, 2023

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Mas esquecer é estar fadado a ignorar a dor criada pelos eventos

Tem uma cena no final de “Contato”, baseado no livro do Carl Sagan, em que a protagonista precisa testemunhar perante o congresso sobre os eventos que ela viveu ao entrar no buraco de minhoca da maquina criada durante o filme. O problema é que oficialmente ela apenas atravessou o portal, nada ocorreu, foi gravado, apenas estática nas câmeras de segurança. As dezenas de horas que ela viveu ali não existem para a sociedade. Ela é dada como louca e a experiência vivida não é validada. Os deputados pedem que ela reconsidere, não fale mais.

Após ser silenciada e desacreditada, pois a experiência individual dela não deve ser divulgada e muito menos provada, dois membros da comissão conversam: um deles ri da ironia de haver somente estática nas câmeras, porém as mesmas dezenas de horas citada por ela de estática

Ainda no mesmo raciocinio, certa vez a sempre genial @liviafer_ comentou que é sempre necessário uma efeméride de fim para as experiências, mesmo que ela não seja o fim real, apenas uma demarcação “olha, pronto, agora a gente pode deixar isso pra trás, como comunidade”.

A experiência individual da pandemia, da quarentena e de toda a neurose acumulada durante o desgraçado ano de 2020, sem perspectiva, sem vacina a vista e sem vislumbre de um fim demarcado tem um pouco desses dois elementos citados.

Porque, assim como Jodie Foster em Contato ao entrar no wormhole, nós vivemos e profundamente as experiências da quarentena. Elas podem parecer diluidas no contexto comunitário, mas aquele excesso de alcool gel, de lavagem de embalagens e distanciamento era puro medo de morrer.

E estavamos abandonados à própria sorte e ao mesmo tempo inibidos de ter algum direcionamento comunitário. O presidente usando horário oficial pra dizer que se tratava de uma gripezinha enquanto dezenas de frigorificos armazenavam corpos. O convencimento de alguma normalidade.

Recentemente uma amiga citou que no dia que o caminhão frigorífico para corpos foi estacionado em frente ao hospital, a professora de ioga online dela disse que a aula do dia seria para lembrar da vida, que ela existe e que ela continuará. E ela continuou. Mas a impressão é que de forma total assincronica, porque não houve um fim determinado, um evento comunitário para demarcar o fim da pandemia (que oficialmente mesmo nem terminou ainda) e que a partir dali a vida continuaria. Não tivemos um luto coletivo pelos mortos (que sequer tiveram um velório).

Em momentos diferentes, progressivamente, as pessoas foram desistindo da quarentena, resolvendo se abrir, decidindo retornar à normalidade, esperando pela segunda dose da vacina. Mas foi um retorno culpado, neurotico, com empáfia, vacilante. E envolto por tabu. Ninguém mais fala.

Das experiências, dos traumas, do medo acachapante, do medo de morrer, do medo de se contaminar, de contaminar outros. De perder amigos, amores. De perder confiança no cuidado do outro. Deixamos de falar, e fomos inibidos disso. Se alguém fala o conteudo parece distante.

Mas foi ai, foi dia desses. É como se no final de 1918 as pessoas não falassem da guerra, não citassem mais ela, ignorassem quem foi e não voltou, silenciassem quem foi e voltou quebrado. Tudo em prol do retorno à normalidade acima de tudo. E não tem tempo, não dá pra parar, o mundo não para de girar. Foi combater o fascismo, foi a crise economica, foi a tentativa real de golpe, foi o medo da terceira guerra. E no grande fichario de experiências coletivas o grande isolamento global do biênio 20/21 ficou pra trás. Foi esquecido e ninguém parece ter feito muito texto, literatura, arte sobre isso. Porque queremos esquecer. Mas esquecer é estar fadado a ignorar a dor criada pelos eventos. E está todo mundo criando ruidos assincronicos numa grande sinfonia de luto coletivo sem um maestro.

Precisamos, sim, não só individualmente, mas também de forma comunitária: recordar, repetir e elaborar.

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