O Tapete, um fóssil

Luduvicu
6 min readDec 24, 2022

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Em Marte Um (2022), Eunice vai embora de casa à contragosto dos pais. Incapaz de se despedir adequadamente, Wellington, seu pai, passa o tempo da despedida reformando uma cadeira antiga que ele gostaria que ela levasse. Que fosse uma lembrança dele na casa dela.

Quando terminei meu namoro mais longo, há alguns anos, me peguei subitamente suspenso, sem chão e paralisado. Me senti sozinho, desolado e sem raizes. Tentei me reestruturar como pude, sempre sem o hábito de pedir ajuda, não achando valido ou sequer cogitando mobilizar outros. Pedi uns dias de afastamento à chefe, que de forma completamente inesperada prontamente me deu o tempo que eu achasse necessário para ficar afastado. Os dias foram se passando e, em determinado momento, o terapeuta se valendo de sua analise e liberdade terapêutica me ordenou que eu pedisse para que minha mãe viesse pra cá ficar comigo. Ele sabia o que estava se desenhando. E foi assim que, pela primeira vez na minha vida adulta busquei minha mãe, com quem sempre tive uma relação conflituosa e quase administrativa. Ela foi sempre o gerente, nem sempre a mãe. Não pedi ajuda, mas sua simples presença. Minha mãe, assim como eu, sempre foi excelente em trabalhar, em prover. Em providenciar algo. Em estar presente se necessário, sem muitas funções de cuidado afetuoso. A típica mãe rígida e incapaz de afeto que, em momentos de crise, com sua secura típica e alguma tendência a se colocar no centro da situação, organiza e estrutura, dá condições para que as pessoas necessitadas de ajuda se localizem e se recomponham por sí. Ela não tutela, ela assiste — o que talvez também tenha seus méritos — . Quem já conheceu minha mãe pessoalmente sabe que ela é fisicamente incapaz de ficar parada. Ela está sempre fazendo algo com as mãos, sempre preparando ou arrumando algo. Na maioria das vezes também falando ou cantando.

Como se já estivesse pronta para o convite — óbvio que estava — , ela chegou na minha casa no dia seguinte, como se não morasse a mais de 800km de distância e viesse de ônibus. Ao chegar, rapidamente se fez em casa, colocou um pouco de ordem ao ambiente que parecia não ver seres humanos há semanas, passou café, sentou à minha frente e conversamos. Eu disse tudo, esclareci a situação e disse que não tinha energia pra fazer nada e só conseguia chorar. Esclareci que só queria parar de pensar e relembrar tanta coisa, escondi que queria morrer e, inclusive, tinha começado a estruturar os pensamentos. Ela disse que iria ao Brás ainda pela manhã e logo estaria de volta, ficaria comigo e juntos passariamos por essa. Mais tarde ela retornou com sacolas cujo conteúdo ignorei no momento.

Calum, o pai de Aftersun (2022), em viagem à Turquia, escolhe meticulosamente tapete para comprar.

Nas semanas se que se seguiram, minha mãe foi bastante diferente de quem sempre conheci. Calma, presente, silenciosa na maior do tempo e compreensiva. Suas mãos estavam sempre em movimento, mas ignorei. Com uma frequência muito grande eu dormia no sofá da sala, com a TV ligada em algo que eu não prestava atenção. No momento passou despercebido, mas ela puxou o colchão do quarto de visitas, dispôs no chão da sala e dormia ao meu lado. Me lembrou da infância, quando ela voltava de longos plantões, deitava no chão da sala e dormia pesadamente enquanto eu assistia TV em horários quaisquer do dia. Me lembrou de quando ela teve burnout e eu, com menos de 10 anos, sem entender o que se passava, assistia filmes na TV de tubo deitado ao lado dela na cama.

Pela manhã era comum eu acordar, me sentar no sofá, tomar café e começar a chorar. Olhar pra ela, pedir desculpas e dizer "eu sei que é de manhã mas eu vou beber, eu só quero parar de pensar". Ela, sentada na poltrona da sala, me olhava com calma, suspirava e dizia "fala, meu filho, bota pra fora". E conversavamos. Ainda nos primeiros dias, em determinado momento eu novamente me desculpei, disse que não aguentava ficar acordado e que iria tomar algo para dormir. Tomei três vezes a dose habitual e dormi por mais de 20 horas. Ao acordar, lá estava ela, à minha frente, calma e compassiva. A passagem do tempo parecia ir aliviando tudo. A presença dela me trazia conforto e segurança sem a irritação e as discussões habituais.

Como disse antes, ela sempre foi incapaz de permanecer parada. Ao chegar, foi ao Brás e comprou rolos e mais rolos de fios de linha. Toda vez que eu acordava e ela estava à minha frente, calmamente tricotava algo. Olhava pra mim, pedia que eu falasse o que viesse à mente e, enquanto chorava comigo, tricotava.

Os dias foram se tornando mais claros, passando de forma mais fluida e se atropelando numa cronologia lógica de manhã, tarde e noite. Começamos a fazer mais coisas na casa. Começamos a assistir filme e seriados juntos, um habito que cultivamos desde a minha infância. E o que ela tricotava de maneira quase automática, sem nem olhar para as mãos, foi se mostrando serem tapetes. Ela fez três tapetes de tecido elástico, de linhas grosseiras, circulares, de pelo menos 1,5 m de diâmetro. A medida que terminava ia distribuindo-os pela casa. O principal deles, azul muito escuro quase preto, ficou na cozinha.

Esse período extremamente obscuro passou, eu me recuperei, nossos dias foram se preenchendo de mais ação, planejar, organizar, conversar sobre outros assuntos, rir quando possível. As vezes rir de nós mesmos. Minha mãe, agora mais segura de que poderia começar a planejar o retorno pra casa, dispôs o tapete maior (azul escuro quase preto) na cozinha e guardou os outros (um vinho, da cozinha, e um felpudo azul, do banheiro).Eu voltei a trabalhar, ela foi embora, minha vida voltou aos eixos e o tapete continuou ali, ignorado em suas origens. Alguns meses depois, quando ela voltou me visitar, queria jogar fora esse tapete e se ofereceu para tricotar outro. Sem entender porque, quase ofendido, disse que não, que era pra deixar esse tapete ali. Eu gostava dele.

Sophie, filha de Calum em Aftersun (2022), já adulta, acorda no meio da noite e pisa no tapete comprado pelo seu pai em seu aniversário de onze anos, em viagem para a Turquia

Nesse anos todos, esse tapete presenciou muita coisa, muita vida. Muita gente pisou sobre ele. Muitos amigos tropeçaram em suas bordas rombas. Algumas vezes o aspirador-robô enroscou nele, mas acabou se adaptando e descobrindo como subir. Muita comida foi feita pisando nele, muito abraço e beijo compartilhado com os pés descalços sobre ele. Muita risada e também, claro, algum choro. Muito vinho servido e, por que não, derrubado nele. Algumas danças compartilhadas sobre seu trançado. Os gatos deitados, as vezes até nós mesmos sentados sobre ele esperando algo ficar pronto no forno. A taça repousada sobre ele. Esse tapete é um fóssil, deixado no meio da casa. Ele é prova existencial de um período horrível e de como ele foi peça fundamental para eu sair dessa fase. Sem saber minha mãe recobriu o chão para que eu pudesse viver novas e maravilhosas experiências sobre ele.

E lá está ele, até hoje.

O Tapete, puído, hoje com cinco anos de idade

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