O Paradoxo do Papel de Sucesso

Luduvicu
5 min readJun 9, 2021

Recentemente um amigo solteiro, que foi quem pediu pra terminar a ultima relação, se pegou naquela situação de sábado a noite, sozinho em casa, escolhendo um filme, a comida agradável e, como a claquete indicando que a cena começou, como um pensamento intrusivo, surgiu a idéia de que faltava algo ali. Faltava alguém. Essa cena não combina com um monólogo. Essa cena deve ser feita a dois. E imediatamente ele se pegou pensando estar com saudades. E se Ela estivesse aqui comigo? Seria gostoso, teriamos bons momentos juntos. Eu gostava de estar com ela. Combinavamos. E aí está a idéia de que esse papel poderia ser revisitado. Por sorte de ambos — principalmente para a ex que provavelmente ficaria confusa ou até mesmo irritada por essa abordagem surpresa de alguém que nem mesmo tinha elocubrado minimamente as razões e repercussões desse retorno — ele desistiu da idéia. Nem parecia ser mero tesão, mas sim a falta da companhia em momentos que lembram boas experiências em companhia. Em todo momento da narrativa ele ignorou que, se a procurasse, se ela fosse a ele, não viria sozinha, limpa, despojada. Viria carregando bagagens. Rancor, culpa, saudades, frustrações e expectativas. Sempre elas, as expectativas. Essa cena dificilmente se daria conforme o planejado por ele. Possivelmente queria um Copie Conforme e teria um Quem tem Medo de Virginia Woolf?. Ou Pior, a cena do café de Azul é a cor mais quente.

Alguns papéis terminaram, as vezes até a trama onde eles estavam inseridos já acabou e desde então nunca mais tivemos um papel de sucesso como aquele — seja um relacionamento, emprego, amizade, período morando em outro lugar, experiência de vida, etc — e toda vez que estamos insatisfeitos convocamos a memoria dessa novela. Insatisfeitos com quem somos, com quem estamos, com nossa solitude, com o sexo mediano, com nossa rotina, com o salário atual, com o padrão de vida adotado, nossos hábitos adquiridos sendo um novo personagem. De uma maneira geral, insatisfeitos com o resultado de nossas escolhas.

E, então, romantizamos tudo que eramos, a promessa que esse papel significava em nossa vida ou no curso de nossa carreira. Com isso, acreditamos que se repetirmos , mesmo que pontualmente, esse papel com essa pessoa, essa firma, esse lugar, essa viagem, o sucesso voltará. A satisfação lhe visitará mais uma vez.

Até conseguir outro sucesso no currículo, por padrão, voltamos a essa memoria agradável em noites de tempestade, pós sexos ruins, assedios morais em novo emprego, momentos sozinhos, agressões ao nosso ego, recusas inesperadas, etc. Até conseguir outro papel de sucesso equivalente, ou entender que dá pra ser feliz fazendo outra coisa, de teatro de rua a ir para outra arte ou até mesmo não atuar mais, voltaremos a isso.

Aí você está ai insatisfeito com sua vida conjugal, seu corpo, com sua convivência social, com seu emprego, é mercúrio retrogrado, quarentena que dificulta de se conhecer novas pessoas (pela falta de disposição dos individuos potenciais até a biossegurança limitada), momento de questionamento da aventura humana na terra, você para a cabecinha pra um flashback maroto e cai onde? No seu último papel relevante, que te trouxe algo: de cuidado e afeto à sensação de desejo e relevância.

Uma atividade até saudável, até o momento que você fala “quer saber? E se eu largar todos os meus projetos atuais para tentar refazer esse papel de sucesso da TV Tupi pouco antes do grande incendio? Certeza que vai dar tudo certo”. “Ah mas o Netflix tá ressuscitando um monte de projeto legal”. Até o momento que você resolve fazer uma nova visita a essa trama, presumindo que os outros atores estão disponíveis e interessados nesse projeto. Que eles não seguiram em frente com sua experiência. Voltar ao papel pode ser valido, mas é preciso entender o que você está querendo e porquê está querendo.

E esse paradoxo é muito fácil de diferenciar da verdadeira saudade, da falta real. A vontade de dizer à pessoa uma boa noticia, o desejo de ter a companhia dela num momento em que se sente pleno, a falta do cuidar, lembrar do outro com nostalgia ao sentir um gosto ou experiência que era compartilhado a dois, meramente a saudade de conversar com ele sobre um assunto banal e leve, sorrir ao lembrar de uma piada ou jocosidade compartilhada, sentir falta daquele pequeno defeito que não lhe irritava e, ao contrário, te evoca afeto. Isso é falta.

“As vezes voltar é mais cruel do que partir”, Domenico Starnone

A questão a se pensar nesse paradoxo é o objetivo de revisitar o personagem, o papel, essa novela. Meramente regravar cenas isoladas? Receber novamente a mesma atenção e cuidado? Retornar porque o mercado não foi tão receptivo como esperava e desde então não conseguiu nada tão significativo?

Há o desejo de se dar continuidade a essa novela, desatar os nós, resolver os ganchos, evoluir a trama? Há a disposição de revisitar problemas do personagem ou do arco narrativo? Acima de tudo, há o interesse em se escrever uma nova história com o mesmo elenco ou o medo de tentar uma nova narrativa do inicio, assumindo os riscos de um cancelamento precoce ou o envolvimento em uma história sem elã.

Com o tempo a gente amacia as arestas, ameniza o sofrimento sentido e aprende a guardar apenas as fotos boas do álbum sentimental. Galvanizamos a relação na nossa memória e nos tornamos menos reativos a elas. Até que qualquer estímulo arranhe essa proteção criada. Somos todos humanos, falhos, vulneráveis aos outros e a nós mesmos. Antonio Cândido já dizia que só na ficção conseguimos apresentar alguém de maneira coerente e com contorno. Na vida real, sobram arestas, contradições e mistérios. Por isso precisamos cuidar da possivel repercussão do nosso reaparecimento e compreender o quanto estamos dispostos a redesenhar esse arco narrativo ou unicamente pedir ao outro que releia o roteiro só para que possamos, talvez, novamente brilhar. Mesmo que por um breve momento de vazio narrativo interno.

"don’t just give me your heart, expecting mine
saying it’s the debt of a lover" PITOU, Debt of a Lover

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