Certa vez fui a Marselha com o Ex maligno e lá nos hospedamos na casa de uma amiga dele, dos Balcãs, cuja infância foi num ambiente de guerra. Ela sobreviveu, virou adulta, mas precisava sempre fazer estoque de enlatados em casa. Ela sentia-se segura tendo reservas em casa. Isso a deixava calma. A permitia viver aceitando a normalidade daquele novo mundo.
O marido, um francês simpatico e cuidadoso, nos explicou que ela precisava fazer isso. Que ele já tinha compreendido que isso deixava o mundo dela mais seguro mesmo não acreditando que ele continuaria sendo. E ele fazia o que podia, girando o estoque para não vencer, buscando receitas para consumir o conteúdo. Em momento algum ele a repreendeu pelo mecanismo de compensação para tentar estruturar uma vivência de infância destruida, em momento algum buscou mudar os habitos dela. Buscou entender o que fazer para diminuir o fardo desse habito necessário para que ela superasse.
Me tocou essa forma de amor de compreender o ser amado, conhecê-lo, aceitar e cuidar como está ao seu alcance. Sem buscar mudá-lo. Afinal, você ama essa pessoa pelo seu todo, inclusive suas contradições. A isso se chama cumplicidade. Ele assumiu uma tarefa sem que a ele fosse requisitado. E é esse tipo de cumplicidade que se busca na vida.
A gente tá sempre fazendo nosso estoque de enlatado pra se sentir seguro. E fazemos isso com método. E fazemos isso a despeito do que for. Mas ter alguém pra ajudar a lidar com esses enlatados torna a vida bem mais leve e agradável.
