O Amor como Sinédoque

Luduvicu
3 min readJun 4, 2021

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Certa vez, numa mesa de bar de um mundo pré-pandêmico, um amigo, num momento da vida em que ele testava com circunspeção a temperatura das águas onde navegaria seu primeiro amor, me confidenciava com ternura aquele momento belo ao qual todos passamos um dia, de acordar junto, encontrar conforto nesse despertar dos sentidos, buscar na pele do outro o retorno da sensibilidade, nos cabelos bagunçados e na nuca do outro o retorno do olfato, nos olhos do outro o desembaçar dos próprios olhos. E nisso, encontrar paz, sentir que a transição do mundo dos sonhos para o aconchego da cama foi o mais suave possível e que não queremos voltar para lá. Queremos ficar aqui, nessa realidade que é o próprio conteúdo dos nossos sonhos.

"Quase não consigo descrever aquele quarto. Ele passou a ser, de certo modo, todos os quartos em que eu já havia estado, e todos os quartos em que eu vier a estar daqui em diante vão me lembrar do quarto de Giovani" BALDWIN, James

Presenciando a emoção dele narrando esse novo mundo, comentei que ele deveria saborear essa sensação, pois ela era inédita (sabemos que não é, mas deixemos Freud descansando em seu túmulo). E que passaríamos o resto da vida reencenando essas cenas e repetindo nossos atos, de maneira quase cerebelar. Tentando dar novas cores e entonações a esse mesmo roteiro, com essa e com outras pessoas. E que a princípio essa repetição poderia até nos soar uma traição a esse companheiro inaugural. Que estaríamos fundamentalmente traindo aquele a quem fizemos isso pela primeira vez. Até compreendermos que essa cena é parte de nossa história, da nossa narrativa, é elemento de nosso personagem. Que o carinho que damos, damos a quem está disposto a receber e aberto a merecê-lo. Mas o fazemos com gestuais de afeto que carregamos internamente. E que vamos aprimorando esse gestual ao gosto de quem está disposto a dançar conosco, ao seu corpo. E assim vamos fazendo nosso próprio ritmo. Nossa própria coreografia em dupla.

Caden Cotard e sua ex mulher dirigem a si mesmos em uma reecenação de algo que já viveram

Como em Synecdoche New York, em que o protagonista repete à exaustão os mesmos gestos, os mesmos padrões, as mesmas cenas e mesmas narrativas, sempre dirigido por si mesmo do passado, a cíclica tentativa do amor se configura de uma repetição de padrões que sabemos que deram certo em outros momentos (mesmo que de maneira fugaz), ritmos que nos agradam, que achamos que estamos aptos e confortáveis a realizar, que já está adaptada ao nosso corpo e articulações. "Articulações" essas que vão perdendo mobilidade e leveza com a falta de prática e com os impactos da vida. E essa dança vai se tornando cansativa e, por que não, menos natural.

No fim, a expressão do amor, a narrativa do amor que contamos a nos mesmos, que contamos aos outros no seu porvir, no seu durante ou após seu fim é sempre a mesma. Muda-se o personagem alvo de nosso afeto e, ao fim, mudamos nós mesmos um pouco. Deixamos de ser ator, nos tornamos diretor dessa cena.

Synecdoche, New York (2008, dir. Charlie Kaufman)

A cada nova tentativa, somos sempre Caden Cotard (o protagonista de Synecdoche New York) dirigindo atores que interpretam ele mesmo em novas situações e conformações sociais. E cada novo ator adicionando nuances e trejeitos a cenas repetidas à exaustão. Mas independente do quanto ensaiarmos ou até mesmo aprimorarmos o roteiro, o amor é uma peça que só faz sucesso com a sintonia e dedicação dos atores em cena.

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