Mas não se mata Cavalos?

Luduvicu
4 min readJun 2, 2021

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Frank & Marie Micholowsky, em uma competição de dança realizada em 1931, em Chicago. Eles venceram. A maratona durou 3327 horas

Em 1935 Horace McCoy escreveu um livro sobre o sentido da vida durante a Grande depressão americana, centrado em dois personagens vagando pelo mundo em busca de um propósito e do básico, viver. Uma espécie de “O quarto de Giovani” heterossexual e existencialista.

A trama, centrada no narrador Robert, acompanha sua relação com Gloria, que logo no inicio do livro ele admite ter matado. Após se conhecerem eles resolvem participar de uma competição de dança em que ganha quem aguenta na pista por mais tempo.

No que remete à cansativa rotina do capitalismo pandemico, eles se submetem a longas horas numa pista, em movimento continuo, tentando se conectar enquanto buscam se manter em pé, a par da competição com outros, vivos. Independente das provas e dos premios, o que se buscava era uma vida digna.

A industria do entretenimento, q se alimenta do sofrimento e do desespero humano , e persiste até hoje, espetaculariza o sofrimento individual, a angustia do existir a margem, do não pertencer. Durente e nos intervalos da dança (trabalho?) eles vivem, interagem e buscam existir.

Buscam ser individuos. Esses individuos, pela pista, pela dança, pelo desespero, pelo cansaço, se tornam brutalizados, cínicos, ríspidos. E brutalizados, se agridem, se descuidam e se tornam individuos em meio à competição humana. Mas nas adversidades, sabendo que não aguentariam sozinhos, se carregam.

Imagem do filme "Noite dos Desesperados"(1969), com Jane Fonda, baseado no livro

Brutalizados, questionam o sentido da existência e o que é digno no existir. Gloria, sensível às mazelas do proprio existir, constantemente diz que não gostaria de viver. A competição, como a quarentena, se extende além do esperado. O que deveria durar horas, dura semanas, mês.

E nisso se acumula o embrutescimento dos individuos, a violência que os circunvizinha, o cansaço e a fome. Até que a competição é interrompida e seus propositos imediatos suspensos. Gloria surge com uma arma e pede a Robert que dê fim ao seu sofrimento.

O livro, adaptado para o cinema em 1969, com Jane Fonda como Gloria, soa uma alegoria atual ao levantar a questão de que nesse circulo constante de trabalho e isolamento sem perspectiva imediata de normalidade, perdemos o sentido de nossa rotina, existência, devir.

E que nessa roda constante do capitalismo, só seremos capazes de chegar ao pódio com vivencia mutua, com momentos de descanso, com alguma fuga e, principalmente, alguém que nos carregue para que possamos carregá-lo.

E acima de tudo, tendo algum proposito individual ou coletivo. A pista, a dança, por si, não nos manterá ativos. Caso contrário, sem alguém para nos cuidar, sem alguém para cuidar, eventualmente nos questionaremos “Mas não se mata cavalos?” (o nome do livro em português)

E cada um sabe se, nesse caso, estaria na pista ou na platéia aplaudindo o espetáculo do sofrimento humano. Sem alguém dentro ou fora da pista com quem contar, em quem se apoiar, a quem esperar, esse podio sempre fica mais distante e sua busca questionável.

Quem te segurará? Quem te carregará? A quem você cuidará? A quem você carregará? Você está se preparando para cuidar? Está se cuidando para cuidar? Você está disposto? Essa corrida fará sentido solo? O cotidiano, uma pista circular, por si te contempla? É o pódio que você busca?

Quantas horas você trabalhou esse mês? Durante a pandemia? Quem te segurou? Em quem você pode se apoiar? A pandemia, a rotina, o capitalismo diário, a pista: não terminou. Como você vai continuar até poder sair dessa maratona? Quem está por ti? Por quem você está? E principalmente, você quer continuar? E, assim como Gloria, quem entenderá sua dor e poderá te ajudar ao conseguir (e querer) se colocar no seu lugar? Quem ou o que trará Arte, escape e beleza à sua pista?

E esse embrutecimento, te distanciará de quantos nessa maratona rumo ao pódio? Afinal, você chegará ao pódio? E quando chegar, será o que você queria? Haverá alguém para comemorar com você?

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Written by Luduvicu

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