Do que é (e do que não é) Inferno

Luduvicu
14 min readMay 25, 2023

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Um vida por procuração e a ambiguidade do afeto familiar do indivíduo gay

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.

Existem duas maneiras de não sofrer.

A primeira é aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo.

A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis

Dentre as decisões artísticas mais acertadas na adaptação brasileira de Tom à la ferme, baseada na peça homônima de Michel Marc Bouchard, a principal delas é o palco ser apenas uma grande lona coberta de terra vermelha seca que progressivamente vai sendo molhada pelos atos cotidianos dos atores até virar um lamaçal puro, remetendo não só ao interior de um dos países mais violentos para a população LGBTQIAP+ mas também à instabilidade constante de se viver uma mentira, as vezes derrapando e se sujando dela. Constantemente sujando a si e a tudo que tocamos quando passamos o dia chafurdando nessa mentira que tudo cerca, carregando consigo resquicios disso e sujando também quem tocamos. E, é claro, contaminando eles também, de alguma forma. Não é possível continuar esse texto sem me valer da potente premissa acerca da identidade gay levantada por J M Rossi ao falar sobre a narrativa da peça: precisamos aprender a mentir antes de aprender a amar. A mentir sobre quem somos, a fim de não sermos descobertos. A mentir sobre o que somos, a fim de não sermos repelidos. E assim vivemos uma vida no armário, na dualidade entre nos descobrirmos e nos aceitarmos, nos odiarmos e buscarmos afeto, atuar um personagem que acreditamos que a sociedade e nosso leito familiar espera de nós ao mesmo tempo que buscamos algum tipo de individualidade. E nessa dualidade existencial vamos montando uma mentira crescente e que se expande e engloba todas as esferas de nossas vidas e de quem nos cerca, que as vezes perdura por anos, talvez décadas. As vezes nem é desmontada. E passa a enlamear tudo.

“Não me assumi para minha avó no ano passado porque ainda tenho vergonha de quem sou — não intelectualmente, mas bem aquí [dá um tapinha no coração] ainda tenho vergonha. . . Preciso contar minha história direito, porque não foi fácil sair do armário para mim. Dos anos de 1989 a 1997, são dez anos, efetivamente minha adolescência, a Tasmânia esteve no centro de um debate nacional muito tóxico sobre a homossexualidade e se ela deveria ou não ser legalizada. E eu sou da costa noroeste da Tasmânia, o Cinturão da Bíblia. Setenta por cento das pessoas com quem convivi acreditavam que a homossexualidade deveria ser um ato criminoso. Setenta por cento das pessoas que me criaram, que me amavam, em quem eu confiava, acreditavam que a homossexualidade era um pecado, que os homossexuais eram pedófilos hediondos e subumanos. Setenta por cento! E quando me identifiquei como gay, já era tarde demais. Eu já era homofóbica, e você não pode simplesmente apertar um botão para isso. Não, o que você faz é internalizar essa homofobia e aprender a se odiar. Odeia-se profundamente. Fiquei tranbordando de vergonha no armário por dez anos. Porque o armário só pode impedir que você seja visto. Não é à prova de vergonha. Quando você transborda uma criança de vergonha, ela não consegue desenvolver os caminhos neurológicos que… carregam pensamentos de valor próprio. Eles não podem fazer isso. O ódio de si mesmo é apenas uma semente plantada de fora para dentro. Mas quando você faz isso com uma criança, torna-se uma erva daninha tão espessa e cresce tão rápido que a criança não percebe nada diferente. Torna-se tão natural quanto a gravidade. Quando saí do armário, não tinha piadas. A única coisa que eu sabia fazer quando saí do armário era ser invisível e me odiar. Levei mais dez anos para entender que me era permitido ocupar espaço no mundo.

Hannah Gadsby, sobre a autohomofobia, em Nannete (disponível no Netflix)

A trama da peça Tom Na Fazenda é centrada em Tom, publicitário da cidade grande, que vai à fazenda para o velório do namorado morto em um trágico acidente automobilístico. Ao chegar na fazenda da familia do companheiro — que capciosamente não ganhou um nome na adaptação brasileira, nos remetendo talvez à falta de identidade real conhecida desse que morreu ou à universalidade da questão da identidade inventada pelo gay ainda no sigilo para sua familia — , Tom descobre que não só a familia não sabe de sua existência como ignora a sexualidade do namorado. Mas ele também não sabia da existência do irmão de seu namorado.

Tal qual um objeto inerte solto no turbilhão de um ralo constantemente drenando tudo a sua volta, ele rapidamente se vê tragado na dinâmica familiar. Pela falta de hoteis na região (por ser fora de temporada), é convidado pela sogra a dormir na casa da familia, inicialmente interpretando isso como algum tipo de conexão com a sogra. Essa interpretação é rapidamente diluida pelas palavras da mesma, que deixam claro que, na mentira constante do filho morto, ele fora substituido por uma personagem criada, uma namorada loira cuja identidade inicial ele ignora. Parece haver, inicialmente, além de uma tentativa de rehumanização e de não apagamento, também um desejo de conhecer outros lados ocultos da pessoa que ele amou, agora para sempre ausente em presença física. Se relacionar por procuração com esse lugar, essa familia, essas pessoas, pode fazê-lo entender quem era seu namorado. Um conhecimento que lhe fora negado pelo mesmo. Tanto ao ver partes dele nas pessoas e nos lugares, quanto entender porque ele evitava voltar à terra natal. Quantos segredos mais ele escondia? Quem ele realmente era? Alguém o conhecia por completo? Ele mesmo se conhecia? O quanto essa mentira perpetuada o havia deformado por completo?

Interpretado por Armando Babaioff (também tradutor da obra a partir do francês e produtor da montagem brasileira), Tom convence como um personagem cosmopolita petulante e ao mesmo tempo frágil em busca de uma conexão com sua sogra Agatha (interpretada por Soraya Ravenle), se convencendo que migalhas de atenção e cuidado por parte dela significariam algum tipo de vínculo (talvez a replicação da relação frágil que ele mantinha com o ex companheiro). Na mesma noite que chegou ele já é acordado por agressões pelo seu cunhado Francis (interpretado por Gustavo Rodrigues), que sabe quem Tom é e o proibe de expor a orientação sexual do irmão à mãe com a preocupação de que isso possa perturbá-la. Tom então é obrigado a entrar na dinâmica de mentira quase metastática da familia, em que praticamente nada é o que parece ser. Tom é progressivamente atravessado pela mentira, e se vê rapidamente instigado a adotá-la.

Ao analisar a adaptação feita por Babaioff, o jornal Le Monde diz que a versão brasileira “é um acerto de contas familiar violento como um soco” que soube “transformar a brutalidade em um gesto estético”. Esse gesto estético é acertado em todos os aspectos, principalmente na grande ambiguidade dos atos entre Tom e seu cunhado, em alguns momento indistinguiveis de violência ou erotismo. Talvez um paralelo com a forma como os gays lidam com a própria vida amorosa e sexual: a violência como afeto e como atuação erótica. Um estado bélico primeiro como defesa da própria identidade, depois como performance, que pode se arrastar na forma como vivemos. E contaminá-la. Tanto que as brincadeiras EXTREMAMENTE VIOLENTAS que Tom e Francis fazem entre sí durante a permanência prolongada de Tom no interior, são sempre pontuadas pelo “fala quando parar”. Em alguns momentos essa dinâmica ambigua parece uma replica de brincadeiras de irmãos. Em momentos em que Francis está se abrindo a Tom, compartilhando segredos e intimidades, sendo até jocoso com questões de sexualidade, ele parece estar indiretamente renovando a cumplicidade que ele acreditava ter com o irmão antes da quebra dessa cumplicidade por ele ter matado seu namorado de infancia em uma cena descrita de forma lenta e dolorosa. E esse assassinato é literal na trama da peça, mas acontece tanto de forma literal quanto metafórica na vida real, recorrentemente. Na repetição dessas brincadeiras violentas eles pareciam procurar se relacionar de forma cumplice e até afetuosa. Mas o unico afeto que ambos conheciam era a violencia.

Há na trama uma mimetização constante da dinâmica que aprendemos e somos obrigados a aceitar enquanto gays ainda em processo de vida dupla: Tom está sendo agredido, obrigado a voltar ao armário constantemente, sendo apagado de sua propria vivencia e sendo verbal e fisicamente violentado por ser quem é e por sua forma de amar, mas não só continua ali — mesmo que em sofrimento e desumanização — como continua tentando se relacionar com os membros dessa casa e validando essa dinamica mentirosa imposta pela mãe. É o eterno retorno à casa (feriados, datas comemorativas e férias) do individuo ainda no armário.

Tom buscou a familia do namorado, retornou ao Armário de seu companheiro morto, onde talvez estaria o verdadeiro indivíduo, aprisionado, posto ele já ter compreendido que não o conhecia, não teve acesso a ele. E, ao chegar, não encontrando o que se ligar, buscou se relacionar com os membros da familia. Uma relação por procuração. E assim quase que o substituiu, sendo filho para a mãe (a quem, inclusive a chamava de mãe, algo pontuado por sua amiga ao chegar também para manter a mentira à matriarca) e numa relação de competição, cumplicidade fugaz e violência com o irmão (corroborado pela brincadeira de crescente violência e agressividade de "diz quando é pra parar", que culmina no final violento). Tom se entrelaça tanto na dinâmica já disposta de vergonha e mentira quase metastática que, sem perceber, ao ser questionado por sua amiga por que chama a sogra de mãe, ele responde "porque ela gosta". Ele já faz parte da dinâmica perversa da mãe do gay: eu faço de conta que não sei, ignoro os sinais e você alimenta essa mentira, vive uma mentira e retorna a ela sempre que perto de mim. Você se castra, se contrai, anula, por mim, a real e grande figura opressora.

A negação da mãe em lidar com a verdade e, acima de tudo, exigir uma mentira palatável à sua propria moral (ou a que ela acredita que o mundo espera dela) fica muito clara quando ela afirma que seu filho, agora morto, tinha deixado seus diários sobre a cama dela ao ir embora para a cidade: ele pediu pra ela abrir a porta do armário e tirá-lo de lá de dentro e, assim, permitir que ele vivesse plenamente sem ser expulso do reino maternal. Pediu que ela dissipasse o silencio entre eles. E ela se recusou — quantas mãe, quando expostas à realidade da existência de seus filhos se recusam a lidar com ela, mantém uma relação de don't ask don't tell*, os obrigam a voltar ao armário e ignoram a realidade e sofrimento de seus filhos? — . E com isso ela perdeu a vida de seu filho antes mesmo que ele morresse, de acompanhar seus momentos bons e ruins, protegê-lo e comemorar suas vitórias. Ela acompanhou, ao longe, uma encenação frágil. Ao fim da peça, ao tentar entregar os diários à falsa namorada, como espólio devido à viuva, ela praticamente pedia que ela entrasse na mentira e assumisse esse fardo, perpetuasse a farsa e a eximisse de qualquer possibilidade de culpa. E como a falsa viuva não aceitou, só restou a ela ler. Mas já era tarde, tudo estava contaminado, sujo (nesse momento, brilhantemente, o barro do cenário já estava por todo lado, em todo o elenco, em todas as roupas, em tudo). A mentira era indistinguível da realidade. Já era tarde demais.

*Em analogia à politica de décadas do exército americano de não perguntar a sexualidade de seus membros e que, se eles não declarassem, faria vistas grossas

Carinho e violência se misturam, afeto e agressão, cuidado e apagamento. E isso é uma réplica da existência gay em seu leito familiar desde sempre, essa dicotomia silenciosa e sempre violenta. Psicologicamente e as vezes fisica. E mesmo quando saímos dessa dinâmica, esse barro maldito continua conosco, debaixo de nossas unhas, de nossos pés, nossos sapatos. Na barra de nossas calças. É muito difícil sair disso. E não replicar isso nas nossas próprias relações. Estamos constantemente nos sujeitando a muita violência na forma de afeto, muito silêncio dentro das relações, muito apagamento. E tudo se passa num barro que vai derrubando eles, sujando eles, sujando tudo que eles tocam.

Submetido a vários tipos de violências simbólicas — seu apagamento como parceiro do morto — , físicas — a agressão constante por parte do cunhado — e psicológicas, Tom desenvolve uma relação abusiva com a familia da sogra, especialmente com Francis, que funciona como uma espécie de seu oposto complementar e totem de inumeros homens que já passaram pela sua vida. Totem até mesmo de seu namorado morto, posto todas as lembranças sexuais que envolvem o namorado sugerirem uma relação de poder e violência não só sexual.

Para Francis, a presença do cunhado trouxe consigo uma leveza e cumplicidade que há muito lhe eram negadas. Para Tom, o convívio com o cunhado parece cavucar inumeras feridas, inclusive o contato com sua própria brutalidade e crueza e talvez com a dinâmica prévia com seu namorado.

A preocupação quase obssessiva de Tom em humanizar e antropomorfizar o cabrito da perna quebrada que ajudou a nascer enquanto adentra na dinâmica familiar e tentando protegê-lo e salvá-lo chama atenção. Repetindo toda hora “estou com medo que a mãe dele o esmague” parece deixar claro que ele sabe que a mãe do seu namorado morto e do cunhado os esmagou, os oprimiu durante toda a vida. Ele é violentado, agredido verbal e fisicamente, mas está ali tentando ser parte dessa familia. Ele está replicando o afeto que aprendeu, onde a mãe ignora sua sexualidade e os homens o instigam à violencia e auto-ódio. A preocupação obsessiva dele em tentar fazer certo com o bezerro é, talvez, uma forma de quebrar o ciclo e permitir um crescimento sustentado e livre do filhote. Essa insistência pela antropomorfização excessiva é, talvez, uma forma de humanizár o filhote, como seu namorado e cunhado foram desumanizados e como ele mesmo fora pelo namorado e pela familia do namorado. Não foi feito certo com ninguém, com ele, com o morto, com o irmão. Ele precisa fazer certo. Se ele fizer certo, o ciclo finalmente se quebrará. Todo mundo ali é vitima de uma grande opressão do patriarcado homofobico através da mãe perversa, porém dócil. Afetuosa e presente em sua violência. Uma presença opressora. Mais danosa que a grande ausência, a paterna. A mais violenta de todos os personagens.

De forma passiva, carinhosa e até mesmo cuidadosa, Agatha deixa Tom se enrolar tanto no novelo de mentiras da familia que ele acaba assumindo para sí a responsabilidade de protegê-la e deixá-la feliz e satisfeita, primeiro convocando a amiga da cidade para validar a farsa da namorada da cidade e por fim matando o cunhado que pretendia ruir a estabilidade familiar e planejando mentir à mãe sobre o paradeiro dele.

Gradativamente, Tom passa por um processo de desintegração psicológica e desumanização completa. As agressões emocionais e físicas, entremeados por momentos de falsa sensação de pertencimento ao leito familiar o levam a absorver o absurdo da situação e a se colocar no centro da mentira.

Quando Tom pede que sua amiga da cidade, Sara (interpretada por Camila Nhary), venha à fazenda para interpretar a personagem de namorada do seu companheiro agora morto, apenas para saciar as projeções de sua sogra, ele não só está completamente desumanizado, mas também envolto no Inferno ao seu redor. Quando Sara pergunta por que ele está chamando a sogra de mãe, ele diz “porque ela gosta”. Nesse momento ele está completamente enlameado.

A Fazenda é o reino da mãe, onde ela controla a todos. Tanto que a única pessoa que foi “expulsa” foi a namorada falsa — e somente após ela se recusar a entrar na mentira — e, por fim, o filho que agora ameaçava ruir com esse reino.

Francis é bruto, cínico e explosivo, trata o cunhado com deboche, ameaças e violência física. Quase sempre sujo por conta de suas exaustivas jornadas de trabalho nos cuidados com a fazenda, Francis já esta com o barro da mentira até o pescoço. E morrerá nele, em holocausto para a satisfação da mãe. O irmão fisicamente violento, também era mantido aprisionado a uma mentira por sua mãe. Uma mentira conhecida por todos. Um Armário à sua própria maneira. Todos sabiam mas ninguém falava — ainda assim o tratavam como diferente — e ele não se sentia livre pra falar ou pra se libertar disso. A sociedade tratava os dois irmãos como párias, cada um ao seu motivo. Mas o irmão que morreu por primeiro OUSOU sair e viver uma segunda vida na cidade. E Francis o odiava um pouco por isso, por ter tido a coragem de se afastar da lama, mesmo a carregando consigo e contribuindo com ela recorrentemente. Paradoxalmente, Francis é o personagem mais frágil e mais complexo da trama. E ambos os filhos mantinham esse sigilo todo com suas próprias vidas para proteger a mãe, a grande perversa que percebia o sofrimento geral e ignorava em prol de sua propria paz. Que por fim será mantida pelo pacto silencioso que renovou (por procuração) com o ex companheiro do filho morto, entrelaçado pela dinâmica familiar.

A conclusão da trama pode, a principio, soar catártica, porém ela é a apenas a reafirmação da absorção completa de Tom no turbilhão no qual giram os personagens ao redor do grande ralo que nada sabe, que nada quer saber e que busca manter sua dominação constante sobre todos que a cercam. Ele se vê, também, impelido a mentir, a se invisibilizar e de invisibilizar a outros a fim de mantê-la satisfeita e contente. A mãe não pode saber, a mãe não quer saber, a mãe não deve saber. Ela deve ser satisfeita. E assim será. Ela seguirá sua vida sem saber o real paradeiro e destino do filho. E aceitando docilmente a mentira que lhe for ofertada. Contanto que ela possa viver a vida dela conforme os principios que ela ditou, seus filhos sob sua dominação e dentro de suas regras. Por fim Tom, como na anedota de Italo Calvino, aceitou o inferno — da mentira metastática, do sigilo, do agradar a figura cega da mãe que nada sabe e coloca seu amor condicionado à obediência de suas regras, da opressão familiar constante — e tornou-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. E perpetuá-lo, sem saber mais o que é inferno.

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