Das Umheimlich, ou o Luto como despejo

Luduvicu
10 min readOct 17, 2023

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"Oi querido. Sinto muito por você estar passando por isso. Pensei muito, consultei uma amiga e só consegui pensar no seriado Fleishman is in Trouble. Muito bom. É bastante heterossexual e com questões de meia idade que talvez não ressonem contigo, mas ele aborda muito bem a constatação de que não sabemos como está o outro. Não sabemos quais os motivos dele seguir em frente e muito menos se ele está seguindo em frente. Então recomendo isso. Como obviamente já deve ter transaparecido em textos e thread e etc etc, eu terminei meu namoro ano passado. Eu pedi pra terminar pois nào tinha mais como continuar, apesar de eu gostar muito dele e ter continuado gostando dele por muito tempo (em algum grau ainda ter algum carinho apesar de já compreender muito o quanto terminou de forma ruim e como ele já não faz mais parte da minha vida). Aí eu segui em frente, como a gente faz. E me obriguei a seguir em frente, segui à risca minhas regras do texto da Dua Lipa e isso me ajudou muito. E uma das regras era me acostumar com a ideia e me preparar para a possibiidade de vê-lo. E de vê-lo de mãos dadas com alguém. Primeiro porque eu conheço ele, eu sei que ele não tem um universo próprio ou um drive interno para viver sozinho ou lidar com o mundo de forma solitária. E que ele surgiria no meu universo somente quando estimulado e empoderado por alguém, a acompanhá-lo (mais provável amores que amizades). Com isso, eu imaginava que a primeira vez que o visse, seria quando já namorando.

E assim foi. Recentemente eu estava com um amigo no SP Arte (uma exposição de arte no prédio da Bienal), um lugar que eu estava MUITO seguro da possibilidade de não vê-lo porque além dele não ser muito de artes, ele não foi comigo ano passado porque achou o ingresso caro e não mostrou interesse o bastante para eu cogitar pagar pra ele. E me sentindo seguro, acabou que vi ele. De mãos dadas com seu atual namorado. Eu estava feliz e levemente empoderado pelo espumante que meu amigo e eu bebiamos, não me senti mal, olhei de volta, os vi de mãos dadas e ainda comentei brincando com meu amigo “bom, sabemos que o namorado atual que pagou pra ele estar aqui". E segui com meu dia, apesar daquilo obviamente ter me deixado consternado em algum grau. Como imagino que saber que eles estão “seguindo em frente de alguma maneira” (não sabemos e não temos como saber o contexto deles), aquilo me instabilizou. E no dia seguinte me peguei mal. Algo revoltado. Mas compreendi rapidamente que eu não estava com saudades dele, não me senti mal porque me comparei à beleza do atual ou outras neuroses, não me senti mal porque supus que ele estivesse “seguindo em frente” (o que é, independente do contexto ou da análise, um fato). Aí passei o dia seguinte todo tentando entender o que me perturbou tanto e o que me revoltava tanto. E foi uma cena de Fleishman que me fez compreender. Quando compreendi, fui no grupo que tenho com umas amigas e escrevi o seguinte texto. Que compartilho contigo:

“Hoje me peguei MUITO incomodado sem saber dar forma a porque fiquei incomodado em ver o S. e de mãos dadas com alguém (de cara seria natural achar que seria ciumes ou sensação de que fiquei pra trás, etc, mas não é). O R. me pegou de canto e perguntou se eu senti algo tipo saudades ou não. Me senti mal de transparecer o incomodo pra ele mas eu disse, de maneira honesta que não, não senti nenhum saudade dele, não me senti incomodado de vê-lo de mãos dadas com outros ou me comparei a ele, etc. Aí resolvi sair com o Chico e o Heitor, nem conversei especificamente sobre isso mas deixei a cabeça neurótica de fundo (na proteção de tela), pensando do porquê me peguei tão incomodado, me permitindo concluir coisas como que eu seja ou esteja sendo infantil ou egoista. No Fleishman is in trouble — aqui estou colocando as coisas nas devidas proporções, por favor — , quando a Rachel já ‘decidiu’ melhorar do trauma da agressão obstetrica, que ela era forte, que ela era maior que aquilo e que, principalmente, que aquilo não iria definir ela, ela voltou a trabalhar, se focar nas suas prioridades e voltou a se sentir segura de novo. Até que ela encontra o obstetra que a agrediu no elevador, sem que ele a percebesse e muito soubesse o efeito que teve sobre a história de vida dela. E ela se estraçalha. E chora de maneira muito frágil. E a narradora diz que ela voltou a sentir tudo aquilo de novo, voltou a se sentir fragilizada e insegura. Que, revoltada, ela queria dizer a ele tudo aquilo, que ele pegou uma mulher funcional, ativa, independente e que batalhou seu espaço no mundo E A QUEBROU. Que ele andava impune e que ele não sabia do dano que causou nela. E ela tinha vontade de dizer tudo isso. Obviamente, dentro das devidas proporções, foi isso que me incomodou ontem mas eu deixei pra me permitir hoje pra não cancelar nada ontem e vir pra casa choramingar. Esse [ ] pegou um médico de linha de frente, que enfrentou todo tipo de merda possível durante a pandemia, que aguentou uma carga de trauma inimaginável, que sobreviveu um ambiente familiar bizarro e veio pra cá criar minha vida e me quebrou. Que o cuidou, e me quebrou. Ele me quebrou me deixando sem comunicação, me abandonando durante uma viagem com o irmão dele, ignorou os traumas que ele sabia que existiam (porque eu já tinha falado, escrito, repetido, verbalizado) e reavivou eles. Que me descuidou estando na minha casa e me abandonou quando não precisava, me deixou inseguro e persecutório. E esse cara que fez tudo isso estava ali, num lugar onde não iria comigo porque seria caro pra ele ir, andando de mão dada com outra pessoa, impune. E eu ainda estou me recompondo disso do meu jeito e com meus sofrimentos. E isso me irritou. Não que eu quisesse falar pra ele, porque não há resolução, não é um pedido de desculpas — que não virá — que vai amenizar o sofrimento do descuido comigo. Então a presença dele que me deixou consternado. Infantil ou pueril ou imaturo, foi o que senti, porque me senti de novo inseguro. Um pivete vulnerável em frente a quem me machucou e que continua ai com a vida normal. Mas, claro, cabe a mim lidar com isso. Sozinho.”

Tarefa do curso de redação

1. Desenhe uma casinha. Colorida ou não, grande ou não. Mas desenhe, de verdade.

2. Escreva pra mim: a) onde ela fica b) quem mora aí c) o que o morador ou moradores mais deseja? Por quê?

3. Fotografe a sua casinha e mande pra mim, junto com o que você escrever sobre ela.

beijos, muitos.

No filme Nomadland, a protagonista Fern, intepretada por Frances McDormand, abandona sua cidade que fora devastada pela crise econômica, deixa todos os seus móveis num depósito e dele leva apenas a blusa que, mais tarde descobriremos, pertencia ao marido dela. Após a morte do marido ela surpreendeu amigos e familia ao não aceitar encontrar neles o seu refúgio, decidindo se tornar uma vagante. O que ela busca é um sentido, um novo propósito. Introspectiva e deslocada, Fern é uma protagonista sem teto mesmo tendo um teto. Uma nômade sentimental. O Marido era seu lar. Nomadland é sobre luto. Este texto também é. Sobre reconciliar o presente que se esvaiu, pela ausência invariável de alguém do passado, com o futuro agora incerto. Assustador acima de tudo pois essa reconciliação e também reconstrução de um universo agora incompleto se estruturará nos destroços do passado. Essa reconstrução é o presente. A nossa vida de cada dia, nossas novas conexões. O capitalismo, crise, devastação, arrancaram a casa dela. Mas ela não queria mais viver naquele lugar. Ela não queria mais enfrentar aquilo tudo sem Bo. O filme é a ressignificação e reconciliação dela mesma com tudo que ficou.

Ressignificação do silêncio intransponível que a ausência dele deixou, como o protagonista do Livro Augusto, de Christa Wolf.

“Ele mete a chave na porta do seu apartamento. Não é bom chegar a um apartamento vazio. Acostuma-se, tinham lhe dito, quando Trude morreu. Augusto não se acostumou. Sempre que voltava de uma viagem, custava-lhe uma enormidade ter de abrir a porta. Sempre temia o silêncio que o recebereia e que nenhum rádio ou televisão espanta. Ele toma um pouco de ar. Até hoje não se vê em condições de exprimir em palavras o que sente. Ele sente uma espécie de agradecimento por ter havido algo assim na sua vida, felicidade, poderia dizer, se tivesse que escolher uma palavra. Abre a porta com força e entra.” Augusto, Christa Wollf

O luto — assim como o abandono — é uma forma de despejo. Despejo do lar que tornamos o outro. Do coração alheio, do seu universo e do seu viver. Expulsão sumaria de onde eramos locatarios e, na maioria das vezes, acreditávamos já caminharmos para termos titularidade por usucapião. E após esse destelhamento subito nos tornamos, assim como Fern, vagantes pelo mundo buscando uma forma de criarmos um novo lar. Até termos um novo porto seguro, um lugar a voltar, uma constante na variável cotidiana de nossas vidas.

A casinha que resolvi desenhar, assim como a de Carlos Vilaró, descrita por Vinicius de Morais, era também muito engraçada, não tinha paredes e não tinha chão. Agora, retrospectivamente, também tenho a impressão que ninguém podia entrar nela, não. Ela é um homem. Um homem, assim como o Modulor de Corbusier — o modelo vitruviano do homem de dimensões ideais para alojamentos pós guerra, tudo era feito pensando nele e nas dimensões dele — tinha 183cm de altura.

O Homem Vitruviano de Da Vinci, à esquerda, e o Modulor de Corbusier, à direita

Ele era de paredes externas brancas, com algumas ranhuras e rugosidades causadas pelas intempéries e o uso durante os anos. Algumas sardas no rosto, alguns pequenas verrugas na lateral do abdome, que habitualmente eu fazia de ponto de ponto de inspeção, como se um cartão ponto que demarcasse que de novo eu estava ali, tendo acesso a essa morada. Esguio, de pernas finas que balançavam como um badalo em seus shorts longos — que posteriormente ele trocou por curtos shorts onde suas pernas continuavam balançando como badalos de agora menores sinos — , tinha uma tatuagem feita à epoca do termino com o primeiro namorado que serpenteavam suas pernas como se um cilício que ele buscasse carregar consigo para nunca esquecer. O que? Possivelmente nem ele saiba. Seu tórax era habitualmente recoberto por uma puída camiseta preta de estampa da marca Stay Ugly, o que parecia não apenas uma coincidência mas também um posicionamento estético, uma política pessoal de anunciação de sua insegurança habitualmente mascarada por rompantes de autoexposição. Seus braços continham também tatuagens marcadas em sua pele a época de outros terminos, inclusive comigo mesmo. Sim, eu já fora expulso dessa casa antes ou resolvi abandoná-la em momentos em que suas goteiras, vazamentos e partes caindo a tornaram inóspita para a morada. Seu pescoço era fino e sensível ao toque de uma de minhas mãos espalmadas repousadas sobre ele enquanto beijava seus lábios. Seu rosto era marcado por olhos repuxados como se sua ascendência tivesse algum traço vindo da china ou da Mongólia e não apenas da Turquia, como contava sua história. Enganosos pois transpareciam águas calmas onde você facilmente se afogava ao adentrar. Sobre eles o alvo de nossas piadas internas, seus longos e curvados cílios, como se moldados a ferro quente. No topo de sua cabeça cabelos finos e ondulados onde meus dedos frequentemente se perdiam. Essa foi minha morada durante a pandemia. Nosso amor começou no começo do isolamento, nossa comunicação se ampliou e nos preparamos para nos aproximar fisicamente. Eu, o morador desse lar, voltava pra casa dos perigos da linha de frente e era ali que eu me acalentava, esquecia dos perigos, das agruras e dos traumas. E gastava do meu tempo conversando com esse meu novo lar, conhecendo seu interior, buscando jogar luz em cantos pouco iluminados, ajudar em algumas reformas. A medida que a pandemia foi se arrefecendo, de alguma forma também foi se esvaindo o conforto dela, a receptividade dela. Em alguns momentos comecei a chegar e encontrar as portas rangendo ao serem abertas, com dobradiças mais resistentes. Pouco antes do meu despejo, comecei a encontrar a porta fechada e endurecendo para abrir, algumas vezes trancada. E me peguei novamente enrolando pela rua, demorando pra voltar, procurando justificar a demora para voltar pois sabia que ali se tornou um lugar de dormir, não mais um lar. Ali se tornou uma pousada, deixou de ser um lar. Até que eu arrumei minhas coisas e pedi pra ir embora pois já não me sentia mais acolhido nessa casa, sem tetos, sem chão e com a impressão que ninguém podia entrar nela, não. E ao longe rapidamente percebi que a movimentação na casa, como esperado, foi imediata. E tentei, assim como Fern, seguir com minha vida. E voltei para o meu lar, minha morada, minha própria casa, onde eu sempre fui proprietário. E assim voltar aos meus hábitos.

Há um conceito criado por Freud, chamado Das Unheimliche. A palavra tem uma derivação formativa ambivalente por conter significados opostos. Do Alemão, heim significa morada, Lar. Usado também como íntimo. E un é um prefixo de negação. A palavra significa algo como "íntimo estranho", desmorada, saída do lar, inconfortável. E nessa dissonância que vemos uma antiga morada agora se tornar estranha, inóspita, até mesmo insalubre. E nessa dissociação entre o histórico passado e a narrativa futura, nos deparamos com um fantasma a nossa frente. E é isso que essa casa se tornou pra mim. Um Umheimliche. Agora sim, sem paredes, sem chão e onde ninguém pode entrar, não. Mas esse ninguém é apenas eu, destelhado. E passar perto da casa da qual fui destelhado desperta a mesma sensação de fragilidade que sente a criança passando pela casa do bairro com fama de amaldiçoada. Nela habitam minhas narrativas ainda, porém a ela não tenho mais acesso.

Como reescrevê-las?

Notas da aula

Para além do momento que a verdade aconteceu, tudo é ficcão

Se aproprie da historia e conte ela como lhe vier

Não tenha medo de usar sua historia

Escolha o que e como contar

Se agarre aos seus gatilhos de escrita

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