Quando fiquei sabendo da morte do meu pai, estava escolhendo iogurte no Extra 24h da Avenida Paulista, levemente alcoolizado após ter ido ao bar com a melhor amiga e outras pessoas queridas assistir o Jornal nacional no dia que esperavamos a denúncia da rede de fake News do Bolsonaro nas eleições 2018. A denúncia não veio, a sensação de que estávamos afundando aumentou. Soube que algo grave tinha acontecido porque minha mãe me ligou e me perguntou onde eu estava. Ela nunca liga. E muito menos pergunta onde estou. Nossas conversas são sempre por escrito. Eu conversava pelo WhatsApp com uma amiga sobre ir embora do país se o Bolsonaro vencesse. Interrompi a conversa pra atender a ligação da minha mãe. Estava prestes a me tornar oficialmente órfão de pai, situação na qual já estava aclimatado há décadas. Imediatamente recebi mensagem de minha melhor amiga e do meu ex benigno – que já era ex há vários meses – me perguntando onde eu estava e a ordem (sim, ordem) de ir imediatamente pra casa dela. Eu sabia que minha mãe ligou pra eles antes de ligar pra mim. Pela primeira vez na vida ser o último a ser notificado de algo que me pertine me trouxe a sensação de cuidado. Fiquei catatônico por algum tempo, em frente aos iogurtes. Esqueci a chave de casa e minha carteira na cestinha que acabei deixando por ali. Eu não chorei. Fomos os três para a Bella Paulista, onde bebemos e conversamos. Nesse meio tempo minhas passagens foram compradas para viajar pra cidade natal na manhã seguinte. Não lembro de ter feito isso, mas alguém fez. Fui cuidado.
No dia seguinte cheguei ao velório no meio da manhã. Fui ver meu pai no caixão e não o reconheci. Aquele homem sem barba, de rosto lívido não se parecia em nada com meu pai, um homem que jamais vi sem barba. Toquei na mão dele e estava fria. Me despedi daquele corpo que diziam ser do meu pai. Mas não parecia meu pai. Precisaria me despedir da memória e da ausência do meu pai mais tarde.
Fui recepcionado por muitas cabeças que faziam a leve inclinação lateral de 30 a 45° enquanto me perguntavam como eu estava. Minha mãe fazia o que ela sabe fazer para cuidar e não demonstrar fraqueza ou dor: lidava com burocracias. Algo que fazia com prazer porque podia reclamar disso depois. Minha prima histriônica parou ao meu lado e começou a contar anedotas de como o tio preferido dela brincava com ela de cavalinho quando criança e outras brincadeiras que esse tio, meu pai, não fez comigo. Eu não lembro disso. Não aconteceram. Aproveitei a titularidade de filho órfão em dor para encarar firmemente minha mãe e sem pronunciar uma palavra, mandá-la sumir com essa canalha do meu lado antes que eu a quebrasse no meio. Minha mãe a levou pra buscar protagonismo em outro lugar. Eu não chorei. Fui apresentado ao enfermeiro que cuidou do meu pai em casa nas últimas duas semanas, desde que ele saíra do hospital. Ele me tratou como um patrão e se prontificou a relatar momentos que partilhou com meu pai, vaticinando que meu pai sentia muito orgulho de mim. Ele não usou a palavra amor. Usou orgulho. Fiquei incomodado. Não chorei. Enquanto perambulava entre os grupos de familiares e conhecidos e desconhecidos ouvi um burburinho de que estavam tendo dificuldade de encontrar um padre para o velório. Alertei que se algum evangélico da família sugerisse um pastor eu, como filho do defunto, estava preventivamente vetando a ideia. De última hora conseguiram um padre haitiano preto. Quando ele entrou me vi encarando o defunto do meu pai e sorrindo – Sim, sorrindo – enquanto pensava “que ironia você ser velado por um padre preto haitiano depois de anos sendo racista e falando cretinice sobre a migração haitiana em massa para a minha cidade natal. O padre, impressionantemente simpático, tinha dificuldade para falar meu nome, para falar o nome da minha mãe e para falar o nome do meu pai. Ele errou o nome do meu pai. Novamente, me peguei sorrindo. Até que a primeira lágrima veio. Não foi pelo pedaço da Bíblia completamente inespecífico que ele lia com dificuldade, não foi pelo choro teatral das minhas poucas primas presentes, foi pela súbita constatação de que aquele homem morreu e eu era oficialmente órfão. Que um universo de possibilidades de redenção e reconexão iam dali a pouco pra debaixo da terra. Pela oficialização apenas, pois o luto por tudo isso já estava ali há décadas. Eu tentava parar, tentava não fazer barulho, respirava firmemente e as lágrimas escorriam incessantemente. Estava começando a chamar atenção e eu odeio isso. Quando tentei mais firmemente parar de chorar me peguei olhando firmemente para o corpo daquele homem que esteve ausente esses anos todos. Estava ali, agora, presente, em corpo, e eternamente ausente. Me peguei soluçando. Resolvi sair da capela. Sentei na calçada do lado de fora e só conseguia soluçar. Não sabia porque. Não se passava nenhum pensamento na minha cabeça. Apenas o corpo escorrendo em lágrimas. Meu primo que fora criado como meu tio achou de bom tom sentar ao meu lado, me apertar, chorar comigo. Ele perdera o tio preferido e também seu irmão. Quando ele achou de bom tom falar algo sincero, só conseguiu dizer que meu pai sentia muito orgulho de mim. Não usou a palavra amor. Isso doeu como se ele tivesse enfiado à mão nas minhas entranhas, puxado elas pra fora e as esfregado na minha cara. Continuei chorando sem pronunciar uma palavra. Outros familiares fizeram a fila para me dizer palavras de apoio. A palavra orgulho foi repetida várias vezes. Eu nem chorava mais. De lá fomos ao cemitério sepultar meu pai. Lá recebi a ligação do meu chefe que, há algumas semanas vinha intensificando seu assédio moral comigo. Ele disse que não tinha conseguido ninguém pra me substituir no plantão de final de semana e queria saber quando eu poderia voltar. Ele sabia que eu estava enterrando meu pai. Eu poderia ter mandado ele se foder, eu poderia ter dito pra ele se virar, eu poderia ter desligado na cara dele mas eu disse “estou terminando de enterrar meu pai, já vejo o que vou fazer”. Mais tarde comprei as passagens para retornar na manhã seguinte, a tempo do meu plantão. Essa passagem eu lembro de ter comprado. E o ódio que senti fazendo essa compra. Naquela noite, enquanto esperava minha mãe se arrumar para irmos jantar, tive um súbito desespero pensado “esquecemos o pai lá no cemitério”. Mas rapidamente meu cérebro se encarregou de explicar a mim mesmo que ele estava morto, aquele corpo precisava ficar lá. Não entraríamos em pensamento mágico aqui não. Naquela noite, no jantar, usei meu humor sardônico de praxe para fazer minha mãe rir. Disse para vermos pelo lado bom, seria um voto a menos para o Bolsonaro. Rimos com algum amargo no fundo da garganta. Dias depois, ao colocar minha roupa para lavar, percebi que do rol de camisetas pretas que uso para acobertar meu transtorno de dismorfia corporal, a que usei no velório foi a que tem os dizeres "I Don't Care" nas costas. Achei irônico e resolvi nem levar pra terapia, não parecia necessário. Doze dias depois o Bolsonaro foi eleito. Saí do plantão, fui para casa com uma sacola de doces e ultraprocessados para lidar com a angústia, me sentei na ponta do sofá rosa que foi feito sob medida para ser confortável a namorados de quaisquer alturas que eu eventualmente tivesse e me pus a chorar. Meu ex benigno me mandou mensagem dizendo que tudo ficaria bem, não precisaríamos nos desesperar. Ele foi la em casa e se sentou na outra ponta do sofá de um metro e noventa. Ficou em silêncio enquanto eu chorava. Disse que tudo ficaria bem. Como sempre, respondi que eventualmente.
Eu vinha há meses acordando para trabalhar e chorando de desânimo de ir para aquele lugar. Dois dias depois da eleição do Bolsonaro o meu chefe bolsonarista, talvez empoderado pela vitória do seu candidato, se tornou mais agressivo no assédio. Eu resolvi me demitir. O diretor da unidade implorou, ameaçou, argumentou. Naquele dia eu agradeci pela experiência nos grupos, me despedi e sai dos mais de 36 grupos de whatsapp da firma. Nos meses seguintes passei por um processo de desligamento lento e progressivo da sociedade. Viajei muito, conheci muitos lugares. Quando percebi o perigo dessa desconexão e pulsão de vida e de morte ao mesmo tempo, me segurei onde pude e me salvei. Retrospectivamente vejo o quanto esses eventos tinham relação.
Tenho um projeto de brincadeira com a Renata, chamado "Chorando na Savasana". A postura da Savasana (ou postura do cadáver) na Ioga é o momento final, de relaxamento. Após tensionar seu corpo e levá-lo ao extremo de tensão e cansaço, deita-se em uma posição confortável e busca-se o relaxamento total. O apaziguamento dos musculos, do cérebro, dos pensamentos. E nesse momento, o corpo costuma relaxar a tal ponto que algumas pessoas dormem e algumas choram. Por mera resposta fisiológica o corpo talvez entre em relaxamento tal que os canais lacrimais se esvaziam. Pra mim, especificamente, a torrente de pensamentos é canalizada de tal forma que tudo se torna um ruído branco. Um rio em que você tenta colocar a mão para pegar algo mas tudo escorre. A neurose se esvai. Ha calma no silêncio mesmo com o pensamento ativo. Na maioria das vezes escorre algumas lágrimas , algumas vezes pensamentos vem a tona, momentos, pessoas. As vezes raiva, as vezes angustia. As vezes as lágrimas vem sem qualquer justificativa para sí. Mas o importante é quando elas vem, pois, nas palavras da professora, você se permitiu chegar até ali, você deu isso ao seu corpo. E é MUITO relaxante. Por algum tempo recente eu me obrigava a sair antes da savasana, pois a cabeça não desacelerava. Os pensamentos intrusivos estavam ali, mais fortes que minha musculatura tensa.
Desde a vitória do Lula venho numa euforia e alivio egóico quase incompreensível. Desde que minha melhor amiga caiu nos prantos no meio de uma multidão dizendo “nos vencemos, nos sobrevivemos”, algo relaxou em mim e tudo se tornou savasana para a tensão desses ultimos anos. E desde então eu tenho chorado. É como se a tensão dos últimos quatro anos, o medo, a angústia, a sensação de impotência tivessem se liberado de uma vez por esse rompante de esperança. E desde então eu tenho chorado muito. Mesmo estando bem. Mesmo não estando melancólico. Não foi só a esperança criada pela vitória eleitoral, o retorno dos dias quentes e ensolarados à cidade, a perfeição do fim de semana do Primavera Festival não só pelo evento mas também pelas companhias impecáveis. Após o período nebuloso da pandemia em que eu não me permitia chorar pelo sofrimento, pelos mortos, pela angustia e pela neurosa. Em que eu me agachava no banho quente e sentia a camada de alcool 70 escorrer pelas mãos como uma luva que se ia pelo ralo. Após um período de muito trabalho e pouca socialização. De muito isolamento e dedicação de atenção a alguém codependente. Após uma relação amorosa com um homem insuficiente, fraco, neurótico, incapaz de dizer que me amava, que me desejava. Incapaz de receber palavras de amor e de apoio, rebatendo-as como se elas desmerecessem suas inseguranças íntimas. Após idas e vindas com alguém que eu amava mas resolveu ir embora ignorando minha necessidade dele e minha necessidade de cuidado (motivo pelo qual terminamos da primeira vez), que me disse que não via necessidade de cuidar de alguém além dele mesmo (motivo pelo qual o expulsei da minha casa na segunda vez, em plena pandemia quando eu me cuidava e cuidava de nós dois), que não me respondeu quando eu perguntei se a irmã dele sabia que eu existia depois de namorarmos por mais de dois anos (motivo pelo qual levantei e fui embora da casa dele da ultima vez). Com uma relação de codependencia com seu próprio irmão, que servirá como uma âncora para sua própria existência por anos a fio. Após uma relação amorosa em que eu me consumia cuidando e me cuidando pelos dois enquanto ele se isolava de amigos que julgava serem pior e mais vazios que ele e hoje provavelmente retornou ao convívio deles. Após uma relação amorosa com um jovem que não sabe se comunicar com palavras e tem igual pobreza de universo e complexidade sentimental. Após uma relação longa com um jovem que não tem pulsão de vida offline, cujo funcionamento e energia estão mais focados em que roupa comprar ou que visual montar ou fazer amizade com pessoas que podem lhe trazer conexões profissionais e em orbitar um consumista desinteressante que o trata como um mentor trata um aluno enquanto usa a propria posição profissional e na empresa para galgar uma posição de influencer que nunca virá. Após uma relação desgastante com um jovem cuja pulsão sexual insuficiente era voltada para ser desejado por poucos na internet e fantasiar com homens comuns na internet enquanto justificava a pouca procura íntima em ter menos energia sexual que eu, fantasiando fazer sexo a três com alguém vago na internet enquanto nem mesmo se dispunha a se conhecer melhor a dois. Após uma relação desgastante e que me deixava cada vez mais inseguro com alguém que acordava emburrado e era melancolico fora da internet enquanto sua movimentação on-line era uma busca incessante pela própria imagem e uma imagem que não condizia com sua persona real. Após tudo isso que desgastou, minou, cansou, esfarelou com minhas energias e minha autoestima, veio um período de conhecer pessoas interessantes, me cercar de quem eu amo, ouvir palavras de apoio, estar cercado de gente muito comunicativa, de sentir que eu, meu universo, minha casa e meu corpo são dignos de desejo, atenção e companhia satisfatória. Principalmente por mim mesmo. Receber carinho, afeto, atenção, e que eles não façam parte de preliminares para o sexo. Aprender a receber isso tudo e não ser preâmbulo de uma demanda do outro.
Desde a vitória do Lula os dias tem sido leves, belos, cheios de possibilidades. Talvez uma mera coincidência temporal, talvez um rearranjo astral. Ainda assim tenho chorado em momentos belos. Chorei muito no show da Bjork, chorei no show da Jessie Ware, chorei em restaurantes, chorei no café ouvindo Gal, chorei muito lendo, chorei muito na Mostra de cinema. Ainda assim, nenhum desses choros teve cunho melancólico ou de tristeza. Há paz, há alívio. Há um certo redescobrimento do mundo. Do meu próprio mundo. De mim.
No último feriado eu estava bem, eufórico. Na hora da savasana, ao início do relaxamento saiu a primeira gota. Grossa. E ela abriu algo que não consegui fechar. Eu não conseguia parar se chorar. Me questionei por que chorava. Não sabia dizer? Não havia uma imagem mental, um pensamento. Não havia nem mesmo melancolia. Mas eu chorava como uma criança que chega a perder o fôlego com o próprio choro e precisa se recompor para, então, voltar a chorar. Com anuência da professora, me levantei e fui pra ducha. Lá continuei chorando ainda sem entender o que se passava. Perdi o folego chorando sem nenhum pensamento melancólico, estressante ou negativo na cabeça. Talvez meu corpo esteja cansado, apenas. Isso tudo seja um mero reflexo fisiológico de estar relaxando apoia muito tempo com a musculatura tensa. Cansei de tanto sentir por mim e por outros. Foram alguns longos anos de muito sentimento. De muita tensão. Talvez agora seja a hora de um pouco de calma. É bom, finalmente, chorar na savasana. Dar isso ao meu corpo.