Na infância e por boa parte da adolescência eu tinha um sonho recorrente. Ele consistia de estar ou me sentir em perigo, buscar falar e não conseguir. Estar ao lado de alguém querido, importante para mim ou fonte de proteção e não sair nenhum som. Tentar gritar e não sair ruido algum. Ironico pensar que nas vezes que não fui ouvido, que o que dizia era paulatinamente ignorado ou até mesmo repreendido por expressá-lo, eu me ocupasse por gritar. E o barulho saia. Muito alto as vezes. Da última vez que isso ocorreu, o volume assustou a mim mesmo. Ainda assim, o que foi dito não foi ouvido. A impassividade e completa falta de expressão do interlocutor denuncia a invasão da realidade pelo sonho. Saí sem respostas, quaisquer que fossem, que confirmassem minhas inseguranças e queixas — que não eram acusatórias, mas buscavam dizer olha, estou me sentindo assim há alguns meses, isso tá aumentando, peço que por favor me ajude, cuide disso que estou deixando claro — ou que alijassem essa angústia com um posicionamento firme que demonstrasse um mínimo de compreensão, continência e cuidado. Saí dalí depletado, sem voz.
Freud teorizou o processo pelo qual a energia libidinal disponível na psique é vinculada a ou investida na representação mental de uma pessoa, idéia ou coisa. Chamamos de catexia, mas ele usou a palavra besetzung, que se traduz literalmente como investir, ocupar. Investimos uma energia vital, um libido naquela idéia ou pessoa. E com isso nos ocupamos e, na maioria das vezes, esperamos um mínimo de investimento alheio. Aí onde entra a ideia de que se constroi algo, sólido, duradouro. O que Arcade Fire cantou em Put Your Money on Me, numa linguagem mais capitalista. Investimos libido em direção à pessoa que desejamos ou amamos, às relacões que desejamos manter, às conexões que não queremos perder. E nisso, travamos uma quantidade de energia colossal que não pode mais mover-se em direção a novos objetos até que passemos pela decatexia.
Uma forma de término comumente vivenciada por quem se relaciona com homens cis (sejam eles gays, heteros ou bissexuais) é esse desinvestimento, sem a ruptura desse contrato sentimental, sem a notificação de novos propósitos, objetivos ou ideais. Um aumento da ausência, a mudança da linguagem da relação na comunicação diária, o descuido cotidiano e até mesmo a mudança de foco do desejo. O outro lado se torna inseguro pela mudança de linguagem, pela não compreensão de novos sinais, se torna chato por demandar um retorno ao habitual, por requerer de vários modos que o outro mantenha seu libido como de costume (aqui no sentido não apenas sexual), se torna cansado pois esse ruido constante que incomoda mas ainda não é insuportável vem crescendo e isso consome. Até que o outro lado explode, até que o outro lado busca uma razão, até que o outro lado se torna excessivo. Um quiet quiting (ou demissão silenciosa) em que o outro lado termina porque não aguenta mais. Não aguenta mais a mudança de linguagem da relação, não aguenta mais a insegurança, não aguenta mais o desdem do outro com sua insatisfação, não aguenta mais a si mesmo com aquela pessoa. E nisso temos a enorme população de ex-loucas andando por aí. Muitas ex loucas e nenhum homem responsável por esse fim ou deixando-as loucas. São sempre narrativas de namoros que do nada desandaram porque a outra parte ficou insuportável. Do nada, a ex ficou chata e explodiu. Toda mulher (ou gay) que já passou por isso sabe como é insidioso esse quiet quiting, e com um ruido crescente e cada vez mais difícil de ignorar. Tem memória de um momento, evento, situação ou viagem em que se sentiu sozinho mesmo acompanhado, como se o outro não quisesse sua presença ali mas não tivesse a energia de dizê-lo. O outro mesmo próximo fisicamente estava ausente, conectado a outros e sem o interesse em te buscar ou te fazer se sentir querido na situação. Um momento em que a linguagem do amor entre os dois se tornou praticamente disártrica, incompreensível aos seus ouvidos. E você pensa por que ele está sendo assim? Ele jamais foi assim comigo. Isso quando não surge a angústia, sempre o lado louco e excessivo, de pensar que essa mudança se dá por problemas pessoais que ele tem dificuldade em confidenciar, inseguranças que você tenta acessar ou até mesmo alguma depressão que te cabe ajudar. E além de louco e excessivo, o outro lado se passa por invasivo.
E esse é o momento, como dizia Nina Simone, de levantar-se da mesa e sair. O problema é que nessa decatexia — esse processo de formação do luto, de sufocamento da energia vital voltada ao objeto do desejo, pelo outro em sua posição na nossa vida, pela expectativa criada, pelos planos e anseios — , a energia não é imediatamente liberada. Não é algo pragmático como compreender e imediatamente tomar a decisão executiva de terminar e seguir em frente. Isso é algo que vai corroendo pelas beiradas, cansando, irritando, sua libido muda de canal para buscar acessar o outro: o ciumes, a insegurança, a raiva e até mesmo a repulsa se expressam. Sua expressão libidinal se torna um monólogo constante. E todas essas manifestações indicam ainda a presença libidinal do amor, mesmo que ruidosa e confusa. A maior expressão do amor é a busca.
Só a passividade e apatia denotam a morte desse afeto.