Alodínias sociais

Luduvicu
3 min readJun 5, 2021

--

Brinco com amigos que as vezes você está lá, no meio da terapia, assoviando banalmente e cavando como sempre. Do nada ouve o estampido de bater em um baú oco e sabe que atingiu algum sarcófago. E dói tudo de novo. Ou você finalmente entende porque dói.

“A infância é uma faca cravada na garganta e é impossível retirá-la sem dor” (INCÊNDIOS, MOUAWAD, 2013, p. 416)

O que é triste é, às vezes, compreender que algumas coisas são assimiláveis, racionalizáveis, criamos ciência delas, mas elas estarão sempre ali, como cicatrizes frágeis. E elas sempre irão doer ao menor sinal de tração ou toque descuidado. Aí você alerta, você mostra e fala “cuidado aqui”. Mas nem sempre funciona. Não há padrão de comportamento, não há estratégias maiores que cuidado e pedido de cuidado. Há o se mostrar e falar “aqui toca com cuidado”. Mas não há o que mudar. Não há comportamento ou estratégias. São medos e dores, hiperssensibilidade. Alodínias.

Tem um conceito médico chamado alodínia, que grosso modo é sensação dolorosa por estimulos não dolorosos (tipo alguém querer fazer cafuné sobre uma pele queimada). E as vezes é isso, alodinia sentimental, essa sensação dolorosa por estimulos não dolorosos por partes de outros, na maioria das vezes carinhosos ou apenas descuidados. E se eu sei que tenho alodínia em determinado ponto, e convivo com isso, eu aviso: cuidado ao tocar aqui. Apenas isso. E se o outro opta por ignorar e tocar, mesmo que sem intuito de machucar, ele está sendo doloso, não? O dolo eventual da vida adulta.

Isto não é responsabilidade ou projeção. Isto é respeito.

E fica ai a capacidade do outro de entender que se você disse que algum comportamento desdenhoso qualquer lhe machuca, respeitar.

MANUAL DA FAXINEIRA, Lúcia Berlin

E isso tudo não é necessariamente gatilho, insegurança, exagero, uma projeção sobre o outro. Todo mundo sabe onde seu sapato apertou durante o caminho até aqui e esse calo te dói e te lembra do percurso. Criamos a sensibilidade de entender quando o caldo está entornando.

Ninguém tem responsabilidade contigo, principalmente em relação a suas alodinias. Mas buscar entender e ter cuidado a toque dessas cicatrizes que foram apontadas é uma forma de carinho.

A partir do momento que a mulher preta diz que fica desconfortável que toquem no cabelo dela, a despeito dela se sentir orgulhosa dele, respeita-se. Ignorar o pedido, pegar no cabelo dela e dizer “mas é tão lindo” é uma forma de insulto ao desconforto que ela deixou expresso. Se for do seu interesse conhecê-la, pergunta-se o porquê do incômodo. Se for do seu interesse cuida-la, obedece. Conhecer os motivos dela é, acima de tudo, conhecer a história dela.

--

--

Luduvicu
Luduvicu

Written by Luduvicu

supposed former infatuation junkie

No responses yet