A Reificação do Outro

Luduvicu
3 min readJun 3, 2021

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“Big Mutter”, Erwin wurm (2020)

Durante a pandemia, ambos em quarentena restrita, o então namorado disse ter o desejo de viajar. O plano imaginário era construído com uma amiga, não me envolvia ou contemplava. Eu era espectador desses planos. Entre os empecilhos, saiu um “tenho você” na lista de objetos e itens da vida real que o impediam de viver esse sonho. Sinalizei o Freudian slip, sem me ater a ele.

"Se eu não tivesse essas coisas, acho que iria"

Algum tempo depois, essa forma de pensar reificando o indivíduo a sua frente se tornou mais patente. Havia nesse funcionamento uma recusa na percepção das subjetividades de quem estava a sua frente, sendo na forma verbal ou não. Não soava intencional, mas o funcionamento estava ali.

As individualidades alheias eram ignoradas, e quando se faziam presentes, reprimidas. Desde o acabrunhamento pela insatisfação, o silêncio pela contrariedade a algo, a fome pelo jejum prolongado, o cansaço pos plantão, a dor. Ignorado, sem qualquer busca, questionamento ou proposta de ajudar. Quando a idiossincrasia do outro surgia, ela se tornava um objeto. Incômodo. Que era deixado de lado, para não atravancar a passagem.

Quando a individualidade se impunha, era verbalizada, vinha a repreensão (formas de desamor) por não ter sido dada abertura para o acolhimento (!) ou o cuidado que, quando solicitado, era negado.

“Ora, é óbvio que a outra face do desejo é o medo”

A IDIOTA, Elif Batuman

Em que posso ajudá-lo? Como posso ser mais leve e agradável no seu dia?

O outro, nesse caso, é um utilitário que deve funcionar e prover o que lhe é demandado. Estar à disposição. Sentir fome no mesmo horário que eu, ter desejo ao mesmo tempo que eu, ir dormir no mesmo horário que eu. Me ajudar a escolher o que comer quando distante e ignorar que ele não tem como se alimentar com segurança.

Como um locatário de AirBnb, deve estar à disposição para problemas e falta de insumos, higienização e problemas de eletrica da casa que eu moro mas insisto em me sentir um visitante. Lidar com minhas neuroses de saúde (do COVID a DSTs) como portador de uma procuração, recebendo unilateralmente as escolhas de cuidados com elas. E não exigir ou demandar quando estou focado em outra coisa, de trabalho, aula ou hora de compartilhar momentos com amigos. Se necessário manutenção ou reparo, não será cuidado. E assim, se despreza o objeto que, como uma impressora com o papel atolado na garganta, requer alguma atenção.

No meio de uma pandemia, ao compartilhar quarentena e outorgar ao outro uma série de privações em prol do cuidado mútuo, achar que não precisa cuidar do outro, que precisa apenas se cuidar, decorre da epitomização da reificação do outro. Quem não me serve, assim como um objeto dependente de manutenção fora da assistência, não me serve mais e será deixado de lado.

Quantas relações se dão na base da reificação do outro?

Se ele causar problemas, se ele não me agradar, se ele não me fizer feliz e me tratar bem o tempo todo, eu deixo de lado. Ele me serve, enquanto me serve.

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Written by Luduvicu

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