A Impenetrabilidade das Palavras

Luduvicu
18 min readMar 1, 2024

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Em seu poema Um Amor Feliz, a poeta polonesa Wislawa Szymborska fala sobre o universo particular de duas pessoas que se amam, dizendo que todas as suas pequenas celebrações, rituais, as rotinas mutualmente elaboradas — tratam-se com certeza de um complô contra a raça humana. É nesse universo particular, íntimo, compartilhado, inacessível a outros e construido e reconstruido de forma contínua que se encontram os protagonistas de Close. E nesse universo que, entre palavras sussurradas, entre cores saturadas e não só carinho físico mas também tempo compartilhado, testemunhamos o começo ao fim de uma história universal: a do vínculo de qualquer natureza, da intimidade que nos protege de um mundo violento. E de sua ruína.

Remi e Leo são dois meninos de 13 anos que mantém uma relação cheia de cuidado, dedicação mútua e carinho em um ambiente familiar acolhedor à sensibilidade dessa amizade, em uma área rural não especificada da Bélgica. Não há problematização ou questionamento por parte das familias, que os tratam como quase irmãos. Porque na prática, o são. Nesse âmbito de intimidade os dois constroem um mundo próprio para onde se lançam a fim de fugir do cotidiano monótono. Nesse mundo compartilhado há uma narrativa pessoal, secreta. Um idioma próprio dos corpos, uma sintaxe própria de afeto, mesmo que silenciosos ou mussitantes. Seja na brincadeira da cena inicial, onde simulam ser dois combatentes de guerra cercados por uma multidão — prometendo proteção e apoio irrestrito um ao outro empunhando canos que representam espadas — ou fugindo desse exército imaginário no campo de flores. Seja fabulando um mundo fantástico onde um narra a amizade entre um Patinho que ao chocar seu ovo e abrir os olhos ao mundo faz amizade com um Lagarto e ambos fogem juntos saltando para as estrelas, a fim de ajudar seu amigo a dormir.

Ao terminar a história em que o patinho salta em direção às estrelas, Leo faz o som do vento, soprando no rosto dele. E isso se torna um simbolo do cuidado entre eles, posto que na outra cena em que Leo acorda e percebe que Remy não consegue dormir, sem repetir a história, ele simplesmente sopra no rosto de Remy, deixando implicito toda a fabula previamente contada.

Ao início do ano letivo, a masculinidade patriarcal e, por que não, homofobia estrutural, atingem o mundo compartilhado dos dois: no primeiro dia de escola as meninas perguntam se os dois são namorados e ambos são confrontados com uma definição que aparentemente não tinham percebido ou encarado até aquele momento, ambos atônitos. Enquanto Remí busca os olhos de Leo como uma forma de apoio para esse momento de ataque do mundo externo, esse nega com vigor qualquer relação às meninas. Ali se impõe a primeira distância intransponível entre Leo e Remi, o separar de mãos e o distanciamento forçado. Um muro em que palavras não irão atravessar. Feito de silêncio e titubear.

Dalí em diante há uma brusca mudança interna em Leo, que inicia um processo silencioso e unilateral de expulsão de Remí desse mundo íntimo construido entre eles. Ele busca se aproximar do bully, a fim de questionar sobre um esporte viril que poderia tirá-lo do campo de interesse dos colegas sobre sua sensibilidade infantil, o qual ele inicia e do qual afasta Remí. Dalí em diante ele corta o afeto físico comum entre ambos, Leo deixa de ser afetuoso, inibe o contato físico publico entre ambos sem justificar a Remí (como a cena do gramado em que queixa-se estar com calor para empurrar Remí) e deixa de procurá-lo. Mais tarde, na casa de Remí, Leo sai da cama — onde contava histórias e soprava no rosto de Remí para acalmá-lo quando não conseguia dormir (vídeo acima) — e deita no chão. Na manhã seguinte, ao encontrar Remí dormindo com ele, inicia uma simulação de luta para afastá-lo sem dizer que não queria mais seu contato físico e aproximação. Em determinado momento da história em que o Léo já está se afastando de seu amigo, eles estão brincando na casa abandonada de novo e ao ser estimulado por Remi a entrar na brincadeira de fabulação Léo responde “não estou ouvindo nada, vamos embora”. Eles já não compartilham o universo em comum.

Há uma clara mudança da linguagem entre eles e Remi já não compreende. A confusão interna de Leo o faz iniciar uma abrupta inversão de linguagem afetiva. Remi não sabe reconhecer se é ruído ou se é de fato um alfabeto que ele não aprendeu. Ele está confuso por não compreender e não ser verbalizado do afastamento súbito. E Leo continua negando o afastamento e o abandono. A cena em que Remí chora na mesa do café da manhã e, quando questionado, claramente inventa uma dor de estômago é vista por ele. Remí presencia não só o afastamento de Leo como também sua concomitante aproximação do bully, que agora está sempre ao seu lado, em todas as cenas. Agora defendendo Leo do bully de outros. Vemos inumeras revisitações de momentos agora demonstrando cruamente o abandono de Remi por Leo pela dificuldade de lidar com sentimentos íntimos e sequer nominados. Quando, por fim, Remí se vê confrontando com a constatação da quebra do cuidado e cumplicidade, da rotina em comum, ele se pega indo cobrar porque Léo, que todo dia o esperava para irem juntos à escola, não esperou e veio sozinho para a escola. E começa a chorar. E quando vê sua dor negada e reprimida por quem súbita e silenciosamente o abandonou, percebe-se violentado e explode. Explode contra aquele que lhe dava e subitamente tirou, aquele que lhe procurava e subitamente sumiu, aquele que estava presente e repentinamente falta. E renega. A mudança súbita de expressão de Remí, de raiva para então completo desalento está entre as grandes atuações físicas entregues pelos atores juvenis no filme. Se Leo busca apenas se afastar da atenção implacável e perversa dos colegas, Remi sente a movimentação unilateral subita e silenciosa de Leo como violenta.

"Amizades amorosas nos dão espaço para experimentarmos a alegria da comunidade num relacionamento em que aprendemos a processar nossos problemas, a lidar com diferenças e conflitos enquanto nos mantemos vinculados." bell hooks em Tudo Sobre o Amor

Nesse momento — da luta física, do distanciamento e afastamento forçado por pessoas que nem sabiam do mundo compartilhado entre eles — , ambos foram expulsos do paraíso em comum, construído e compartilhado no convívio. Com histórias, fabulações e também um idioma corporal próprio e exclusivo entre ambos. Algo que nem mesmo Leo reencontrará (visto a cena em que ele vai dormir na casa do novo amigo, o bully, em que as anedotas, conversas na cama e toque físico são substituidas por lutas, videogames violentos e o silencio). É o fim, o afastamento e cada um para seu lado. É uma história de término de amizade, mas também de fim do amor e de cuidado. Dalí em diante tudo é luto. E como cada um irá lidar com ele. Se na anedota contada na cama para fazer Remí dormir, ele simulava o vento ouvido por ele saltando o trampolim rumo às estrelas, quando Léo corre de bicicleta pra casa de Remí em completa negação do que ocorreu, o que se ouve é o vento da queda livre, quase como se um vácuo se formando. O universo se desfazendo. A morte da linguagem em comum, sobrevivendo apenas em um. A perda da inocência.

“A maioria de nós é educada para acreditar que encontraremos o amor em nossa primeira familia (nossa família de origem) ou, se não lá, na segunda família, que se espera que formemos comprometendo-nos em relacionamentos amorosos, particularmente aqueles que levam ao casamento e/ou a vinculos que durem a vida inteira. Muitos de nós aprendem ainda na infância que amizades nunca deveriam ser vistas como tão importantes quanto laços familiares. Entretanto, a amizade é o espaço em que a maioria de nós tem seu primeiro vislumbre de amor redentor e comunidade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos fortalece de formas que nos permitem levar esse amor para outras interações com a família ou com laços românticos.” bell hooks em Tudo sobre o Amor

Parte I: A poda no casulo da masculinidade

Em Escrita em movimento, Noemi Jaffe fala da resistência das palavras. A mesma argumenta que escritores precisam lidar com a resistência dos materiais que trabalham e, assim, passar a tratá-los como matérias que apresentam maior ou menor resistência. Nesse ponto, Lucas Dhont reconhece a dificuldade de penetrar o campo limítrofe entre a amizade e a solidão, o luto e a presença, o cuidado e a violência. A hiância, o vazio entre parênteses. E ele o faz com materiais não verbais: o som, a luz e o olhar e a tacêsica, a comunicação do corpo. E como seus personagens em luto não fazem uso de palavras a fim de se comunicar, Lucas nos mostra. Então lhe resta ruídos e luzes. Tal raciocínio parece ser pertinente à forma de se comunicar da adolescência, quando entramos em uma espiral caótica em que, aprendendo léxico e catando palavras reaprendemos progressivamente a nos expressar entre rompantes corporais violentos e revoltos. É na adolescência, quando deixamos de nos reconhecer como crianças, que a sociedade se contradiz permanententemente nos exigindo maturidade e também nos tratando como incapazes e tutelados, os pais demandam responsabilidade enquanto nos sufocam com o tratamento de condescendência da falta de experiência e o desrespeito à privacidade e decisão de sí e sobre sí.

Esse novo adulto em treinamento, então, precisa deixar de lado uma gramática para adotar outra. Talvez por isso, na adolescência, muitos sentimentos como revolta, raiva, vergonha ou descontentamento são expressas de forma não-verbal e acabam sendo extravasados de formas tacêsicas como agressividade, distanciamento ou simples silenciamento e retração. E nesse limbo de palavras o adolescente se comunica na impulsividade, com a gramática do corpo, com rompantes, alguma violência e revolta esporádica. E quando busca o afeto ao se comunicar, sente estar se traindo do que acha que a sociedade espera dele. E é nessa fase de transição que ocorre o evento mais importante demonstrado por Dhont, a perda do carinho corporal, do afeto não problematizado, do distanciamento entre iguais pelo medo, ocorre a invariável e exigida virilização da tacêsica. A ternura e o cuidado é substituída pelo sádismo, violência e jogos de força.

O próprio diretor, em entrevista, disse que a motivação da trama é demonstrar a mudança de forma de se relacionar entre meninos (13 anos, como os protagonistas) e jovens adultos (18 anos). Essa perda da habilidade de ser terno, de verbalizar sentimentos e expressar amor motivado pelo mundo patriarcal e machista que reconhece isso como feminilidade ou homoafetividade a ser cortado na raiz. Um comportamento não aceito. E é também neste período que o número de suicídios entre os meninos aumenta 4 vezes mais, se compararmos com o das meninas. Quando se deparou com a pesquisa da psicóloga Niobe Way — que acompanhou a vida de 150 meninos ao longo de cinco anos — ele percebeu que tinha encontrado o tema de seu novo filme. Quando ela os entrevistou aos 13 anos e eles falavam sobre seus amigos, contavam como se fossem histórias de amor. Eles se atreviam a usar a palavra ‘amor’ um para o outro da maneira mais delicada e bonita. E então, conforme ela os acompanha, é perceptível como esses meninos, à medida que eles crescem e as expectativas de masculinidade se tornam mais fortes sobre eles, se desconectam completamente dessa linguagem. “Sinto que vivemos em uma sociedade em que masculinidade e intimidade são conceitos muito difíceis de se entrelaçar. Sinto que dizemos aos homens que o único lugar onde eles podem encontrar intimidade neste mundo é através do sexo e que expressar amor e vulnerabilidade para outro homem parece ser algo impressionantemente complexo. Muitas vezes temos imagens de comportamento tóxico — de violência, de guerra — representadas quando se trata de masculinidade, mas raramente vemos uma amizade íntima e bonita em que dois meninos se deitam juntos na cama e só querem estar tão próximos quanto são capazes. (…) em Close, nós tentamos verdadeiramente fazer uma obra que abordasse, por um lado, a fragilidade e a ternura, mas também o que acontece quando privamos os jovens dessa fragilidade.” Entrevista de Lukas Dhont à Vanity Fair.

"A intimidade que aqueles meninos tinham entre si foi interrompida. De repente, a história da minha experiência muito pessoal pareceu se transformar em algo muito mais amplo, muito mais universal. Entendi que queria fazer um filme sobre os impactos da amizade. Acho que durante muito tempo no filme nos concentramos em relacionamentos românticos, mas para muitos de nós, as amizades definem quem somos."

Lukas Dhont em entrevista ao The Hollywood Reporter

Há um conhecimento tácito mas nem sempre compreendido entre os homens que se descobrem gays junto com a própria sexualidade que é a de que o mundo a sua volta descobre e expunha a homossexualidade antes dele mesmo reconhecê-la e entendê-la. Colegas denunciam seu jeito, questionam suas escolhas e companhias, pais e familiares repreendem seus modos, bullyings o perseguem. E assim, de forma consistente, ele é denunciado que é diferente. E assim vai criando ciência de sí e se percebendo ímpar. Inumeras vezes, o que nos denuncia é exatamente afetividade, cuidado, não aversão ao toque e não agressividade como forma de afeto entre amigos, caracteristicamente meramente não vinculadas ao masculino e não necessariamente indicativas de alguma homoafetividade. E isso é o cerne da denúncia do diretor na trama. Não há nenhuma menção de sexualidade ou sexualização na trama e na interação entre eles. Tanto que após a morte de Remi, Leo repete todos os seus momentos de intimidade que teve com Remi, agora com o irmão, seja buscando companhia e conversa na cama dele, seja na proximidade física e abraço cuidadoso ao retorno da plantação — . O reconhecimento pelo público do afeto e intimidade de Leo e Remí como tendo cunho homoafetivo, algo bastante refutado pelo diretor em entrevistas, demonstra como estamos desacostumados a ver a expressão da intimidade masculina fora desse contexto, reconhecendo o afeto físico e o cuidado como alguma tensão sexual implícita, como se o diretor quisesse sugerir algo mais.

Se interiorizamos que o afeto físico entre meninos e homens não é adequado e deve ser inibido, que a expressão do corpo precisa ser virilizada, acabamos sucumbindo à idéia de que a obtenção do afeto, do toque e do carinho na idade adulta deve passar necessariamente pelo campo da sensualização dos corpos. E com isso validamos e recorremos ao uso do corpo como moeda de troca. E sempre que isso nos faltar, vamos inconscientemente repetir dinâmicas que podem ser danosas ou custosas ao ego. Ou acreditar que qualquer demonstração de afeto entre homens sempre vá ter algum cunho sexual.

Parte II: A Violência do silêncio

Quando Remí sai da trama, o enquadramento do filme não muda. Em todas as cenas, mesmo em plano fechado, permanece um espaço que demarca a falta. A falta de Remí. Quando a Sophie vai ao jogo, entre ela e o Leo há um espaço. Há uma falta física, a saudade como um membro fantasma. Lacunas que são ocupadas por ruído.

As palavras de Leo se tornam cada vez mais vazias de significado, principalmente por dizer sempre estar bem, minimizar queixas ao ser questionado, quando seu corpo e movimentos dizem o contrário. A primeira vez que Leo procura a mãe de Remi, Sophie, nem ele mesmo sabe pontuar o que dizer a ela, ele não tem o que dizer mas sente que precisa procurá-la. A dor e a culpa o movem a ela. Ele não consegue, entretanto. E todas as vezes que ele a encontra, como se representando que o corpo dele tem algo na iminência de ser proferido, urgente de ser dito, ele está ofegante (seja por estar correndo, seja por ter jogado o esporte fisico e violento que ele procurou para se camuflar no patriarcado). E fica cada vez mais impulsivo, como é esperado de adolescentes masculinos que se comunicam mais com o corpo que com a boca e de homens já amputados de comunicação verbal pela sociedade patriarcal que não espera deles algo além de acabrunhamento e rompantes. E quanto mais vai passando o tempo da morte e ele não consegue verbalizar a culpa dele, mais ele vai sendo ruidoso e errático. Em sintonia, os cortes dos dias se tornam mais ruidosos e abruptos (a transição seca de iluminação indireta e amarelada das noites para cenas no gelo, no hockey, com muito contraste e ruido). E Leo vai se tornando mais físico, até que finalmente cai e quebra o braço. E esse é o momento em que ele, assim como Remi à beira da mesa do café da manhã, encontra na dor física o canal para justificar a expressão de sua dor emocional. E chora.

Porque como somos seres de linguagem o vazio absoluto é impossível de dizer (como, ademais, qualquer coisa do real), quando nomeamos: nada, aí existe algo, a nomeação pelo menos, né.

Close faz um retrato de enorme sensibilidade. Além de explorar as dores da adolescência, o filme traz uma perspectiva sobre a ação da sociedade na formação de garotos descobrindo a cumplicidade e a intimidade masculina, mesmo que sem nenhum cunho homoerótico.

Parte III: A incondicional ética não-violenta de Sophie

Agora, enquanto Leo encontra-se expulso desse universo que ajudou a esvaziar e todos estão aturdidos pelo absurdo, o silencio do luto se torna cada vez mais um ruido. Leo e Sophie orbitam entre sí tracionados pela intensidade de sua dor e a busca por uma absolvição e resposta, respectivamente. Acompanhamos marginalmente a dor de uma mãe após a perda de seu filho, tentando permanecer funcional e recorrentemente buscando em Leo uma possível chave para elucidar o que aconteceu, como se ele pudesse ter presenciado algo, sem imaginar que houve um afastamento abrupto antes do suicídio.

“Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro” Freud

Mas Sophie não é uma personagem feminina qualquer, mesmo do ponto de vista ficcional. Ela é construída como uma mãe idealizada por um diretor gay buscando questionar a estrutura castradora da própria sociedade e não uma mulher em toda sua complexidade, funciona como uma âncora durante todo o filme em permanente contraposição à corrente contínua da masculinidade patriarcal. Enfermeira de maternidade, surge no filme como uma figura maternal não só a Remi como também a Leo, tanto que ele mesmo a procura a despeito da culpa que carrega por acreditar ser responsável pela morte de Remi. Durante o processo de luto dos personagens ao seu redor, ela é quem se mantém firme e sem esmorecer mesmo quando seu esposo desmorona à mesa do jantar por uma mera pergunta inesperada e cuidadosa. Ela é uma mulher que cuida de todos ao redor, no campo profissional e pessoal, além de lidar com sua dor e angústia de forma madura e inteligente. Na trama ela não recebe apoio ou cuidado em igual magnitude ao que dispõe e da sua posição de vítima na tragedia. Ela está por sí e está por todos. Não explode, não chora de forma incontida — como seria esperado e também justificável tamanho a situação enfrentada — e é continente aos interlocutores de forma cuidadosa e amável. Entretanto, apesar dessa doçura e feminilidade marcante, em momento algum ela é desenhada como fraca, frágil ou muito menos incapaz de atos tão inerentemente ligados ao masculino, como a violência física ou a capacidade de destruir. Ela toma continuamente a decisão consciente de não fazê-lo e por privilegiar o cuidado e o afeto fisico, como fica claro quando Leo pergunta à assistente social quem encontrou Remi e ela responde que foi a mãe, remetendo à imagem da porta arrombada vista por Leo ao saber da notícia do suicidio. Porta essa que ela já tinha exigido que Remi mantivesse sempre destrancada ao início do filme, mesmo declarando que não iria abrir. Como se ela ensinasse para eles que naquela casa o respeito ao corpo e privacidade do outro era tanto que não era necessário erguer barreiras, algo tão pouco ensinado a homens em sua formação. Ela tem uma ética incondicional de cuidado e de não violência.

O único ponto em que essa cuidado incondicional de Sophie titubeia é no momento em que Leo desvia do caminho tomado no inicio do abandono do amigo, da masculinidade patriarcal, de lidar com as próprias angústias com silêncio, o acabrunhamento, o escape em esportes e atividades de impacto, na busca quase incessante por um equivalente físico de sua dor sentimental para justificar a expressão do seu desalento. Quando Léo consegue colocar em palavras a culpa que vinha lidando, ao dizer que se sente responsável pelo suicidio de Remi por ter se afastado dele, que Sophie demonstra sentimentos complexos e humanos e ordena que ele saia do carro no meio da floresta. Ali, na ruptura do acolhimento esperado de quem mais poderia ser agredida pela verdade, Léo se vê na sua posição real: uma criança confusa por sentimentos de culpa ao lídar, ao que parece, pela primeira vez com o imponderável. E se vê acuado pela resposta inesperada do adulto a quem consegue finalmente confidenciar. Léo recorre ao mais primitivo ao empunhar o galho para se proteger dessa fragilidade e falha de comunicação. Como Remi ao agredi-lo por seu abandono, ele está disposto também a adotar a violência como resposta na falha da comunicação verbal. Nesse ponto que Sophie, que vinha desde o início do luto buscando apenas compreensão do que ocorreu com seu filho e nunca um culpado, se põe como adulta da situação e novamente em contraposição à masculinidade e acolhe a criança fragilizada e buscando cuidado s sua frente e o abraça mesmo com o galho ainda em riste. Esse momento, mesmo sem verbo, é terapêutico ao luto de ambos. As próximas cenas demonstram que Sophie e sua família foram embora da cidade, para reassentar sua vida em outro lugar.

“Se os homens querem recuperar a bondade essencial do ser masculino, se querem recuperar o espaço de sinceridade e expressividade emocional que é a base do bem-estar, devemos imaginar alternativas à masculinidade patriarcal” , bell hooks

Ao final, vemos Leo já com o braço recuperado, sem o gesso, andando sozinho pelo campo de flores florido que ele ajudou a plantar , inumeras simbologias de seu processo de cura. Ele olha para trás e, como se contemplasse tudo que se passou ali e tropeça o seu olhar no nosso. Mas não se trata da quebra da quarta parede, assim como outras vezes em que isso ocorre no filme, não parece haver qualquer interação ou cumplicidade entre eles e nós. O diretor tem a sensibilidade de sugerir que nós estamos ali, como meros espectadores, no caminho dos personagens. Como fantasmas que veem mas não podem ser vistos. Ele retorna o olhar, vira-se para frente e segue seu caminho, sem que nós sejamos mais espectadores.

Para que nós próprios possamos lidar como essa história de ruptura é preciso imaginar Leo capaz de aceitar o afeto, sem culpa ou medo. Não só não recusar ou afastá-lo, mas também de bancá-lo.

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