A Cartografia do latifúndio do coração

Luduvicu
8 min readJun 13, 2023

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A direção apontada pela atenção é o mapa do amor

Um grande descampado vasto, plano e inculto. Com alguma paciência e pouco método a terra vai sendo arada, regada, planada, revirada para arejar. Com pequenos atos de afeto o solo juvenil se amacia e o verde surge. Primeiro licófitas, gramíneas, suculentas, depois herbáceas e perenes. As pradarias e pequenos bosques brotam e crescem, tomam conta de tudo. O coração, antes vazio, começa a ter vida, ainda que primitiva e rasteira. Ainda que frágil e dependente. Selvagem acima de tudo.

Esse relvado torna o campo mais úmido, capaz de reter. Reter a noite através do dia com sua umidade, reter o dia através da noite com seu calor. Reter memória do que se passou e é isso que vai adubar esse descampado, agora floril. E no meio dessas vivazes começam a surgir os primeiros indicios de que esse solo é fértil, regado e aquecido de maneira persistente, pois nele crescem os primeiros arbustos. Há vida se expandindo nesse coração antes intocado, virgem.

Essa sucessão ecológica primitiva permite a evolução de algumas espécies, o surgimento de pequenos arvoredos. Nesse ambiente, polinizadores, insetos decompositores e outros seres vivos agora se assentam e colaboram com a complexidade do próprio local. Alguns oásis e copas de arbustos vão surgindo, reservando lugares onde seres podem se proteger do inclemente sol da realidade e onde alguma vida migrante pode se refugiar, mesmo que temporariamente. Tudo é raso, grosseiro e vago. Tudo tem alguma bruteza. Entre cactos e suculentas, plantas maiores conseguem prosperar. Arbustos e ervas, que ajudam a melhorar o solo fixando nutrientes. Com a terra mais rica, árvores maiores começam a crescer. O ambiente é úmido, há um microclima propício para a vida. O vento agora tem aroma. Há, agora, abrigo para outras plantas e animais. Essa floresta em formação agora é capaz de aguentar períodos de estiagem. De prosperar mesmo sob intempéries. Há um microclima que permite, até certo ponto, algum autocuidado dinâmico.

Às primeiras experiências traumáticas brotam as acácias e eucaliptos, que produzem tóxinas que repelem herbívoros e competidores. Os pequenos abandonos, as decepções, as agressões deixam clareiras muito bem delimitadas nessa pradaria. Nesses locais estarão áreas descampadas, demarcando precisamente esses períodos de mácula sentimental. Nessas regiões se assentarão os animais e presas para gatilhos de experiências passadas. Quem por aqui passar, e nessa mata adentrar, deles eventualmente terá de se esquivar.

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” Jeremias 17:9

Com o amadurecimento, uma floresta madura — com uma estrutura de copas densas e diversas camadas de vegetação no solo — se estabelece. No ciclo continuo e fechado dessa pequena floresta clímax em formação, muito dos afetos primitivos fecundados morrem, são enterrados na camada do tempo e se tornam adubo, vão tornar essa terra mais complexa. Esse grande latifúndio vai se tornando uma fértil relevo. Pequenos atos de entrega vão enriquecer progressivamente o solo. A companhia na noite de tempestade, o toque de pele no momento de choro, a busca pela mão na multidão, o afago no reencontro, o chamado sussurrado ao pé do ouvido, o reconhecimento de importância na presença diária. Tudo isso faz parte do grande ciclo de ganho de complexidade dessa terra onde eventualmente se plantarão novas relações, cada vez mais diversas. E que ela possa ser fértil.

Alguns dos afetos, das buscas, das memórias e até mesmo das experiências se tornarão fósseis nessa floresta. Coisas que ficarão perdidas na mata, expostas, as vezes recobertas. Em momentos de ensimesmamento, em que nos isolamos na floresta do nosso próprio coração, nos resguardando, levamos conosco coisas, preferências e hábitos. Os momentos da adolescencia, dos períodos depressivos da idade adulta, da recuperação das decepções, em que nos refugiamos em nós mesmos na companhia de arte, podem ser vistos, em retrospectiva, como períodos de crescimento e descoberta. Mas isso é uma releitura, uma ressignificação. Aquilo, quando presente, foi uma fuga para sí levando consigo um bálsamo que pudesse curar as feridas, amenizar a dor ou meramente fazer companhia: um livro ou autor, a discografia de uma banda que nos obcecamos, a filmografia de um diretor, o hábito de cozinhar, a obra de um pintor, um hábito ou hobby. Tudo isso dá complexidade a essa floresta clímax, sem definí-la por completo. E isto pode ser encontrado em diferentes graus ao percorrer essa floresta com um pouco de atenção. Da escrita cuneiforme nos tijolos usados para conter barrancos e dar forma ou apoio a troncos, até aqueles muito bem escondidos para protegê-los da chuva. Para que essas mensagens não se percam em nós mesmos. Do trinar dos pássaros em uma melodia que nos remeta àquela tarde onde nós foi dito algo importante — que nossos olhos se cruzaram e alguém nos disse Eu te amo — , dos pequenos símbolos soltos pela mata — a lembrança de infância, o presente escolhido como oferta aos primeiros vagantes por esse latifundio, o passatempo de momentos solitários — . A própria distribuição das espécies em direção ao centro da mata já conta, por sí só, uma história. As falhas, os galhos queimados, as porções de terra seca e infértil pela decomposição lenta do lixo deixado por algum vagante e que atrapalharão nosso cultivo se insistirmos em plantar novos afetos ali. As áreas mais floris e com espécies diferentes, pela ação humana de alguém que se deu ao trabalho de deixar algo plantado ali. No caminho de retorno deixamos tudo isso, para que arqueólogos dos nossos corações possam encontrá-los ao desbravar essa floresta em crescimento.

Um belo dia você se conecta a um individuo e sua bagagem e ele se agrada com o que se depara na jornada coração adentro. Tudo aquilo que um dia você deixou pelo caminho, que te fez companhia em momentos solitários, que te preencheu em períodos de questionamento interno é o que ele vai olhar, sorrir e dizer "que lindo esse seu jeito", "como você faz isso de forma especial", "que bela sua forma de ver", "amo a maneira de você fazer essa associação", "me fascina você saber disso", "amo como você conta isso a todo mundo que conhece". O que lhe fascina é o que você carregou consigo em sua jornada de fuga da realidade acachapante, de ensimesmamento. As vezes, até mesmo, o fez, como artesanato, com partes da própria floresta.

Esse arqueólogo do coração, guiado por sua própria atenção, cartografando o relevo desse local antes pouco desbravado, resolve percorrer as trilhas já existentes e margeadas, sair delas e desbravar novas trilhas por sí só, se refugiar em meandros, pequenos buracos. Nessa empreitada ele descobre esses fósseis e os coloca no bolso para depois mostrá-las a você. Nesses pequenos momentos em que alguém parece adentrar nas fendas que você deixou escapar em sua própria armadura, encontra algo em você, se apaixona por essa peculiaridade, te mostra e diz “olha que lindo isso”, você ri e pensa "Isso é uma cicatriz, doeu pra caralho isso. Onde já se viu achar uma cicatriz bonita". Mas é. Era uma ferida, você fechou. Era um solo infértil, seco, você arou e regou. Era uma pedra, você deu forma e apoio, fez dela uma ferramenta que lhe pode ser útil. Usou um tronco derrubado por tempestades como sustentação para um forte que dê morada a visitantes em outros momentos de tempestades. Pois elas fazem parte do ciclo de vida dessa grande floresta.

(…) então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso? Um só buraco na rede e você escapou? Fiquei mudo de surpresa. Escuta, como seu coração dispara em mim.” Wislawa Szymborska

Mas nem só por arqueólogos cuidadosos e metódicos essa floresta é visitada. Às vezes por animais selvagens, que como fantasmas da noite, espreitarão esse mato, te atacando em momentos de refúgio ou nas noites mais frias ou perseguindo outros visitantes que aqui possam vir. Às vezes visitantes descuidados — não necessariamente maliciosos — passam por essa floresta e a danificam, deixam material a se decompor e macular esse solo antes fértil, puxam canivetes e entalham seus nomes em galhos de grandes troncos. Alguns forasteiros mais negligentes criam grandes clareiras na mata e, no intuito de se aquecer e iluminar a noite, usam troncos para criar fogueiras. Essas fogueiras e descontrolam e viram incendios. E nesses momentos acreditamos que tudo vá virar cinza, que o coração vá virar uma grande cicatriz cauterizada. Será destruido pelo descaso alheio.

Esse campo então é inundado pelas lágrimas. Lágrimas que lamentam o fogo, lamentam a perda de memórias, lamentam a posse pelas chamas de eventos que o precediam. E as lágrimas salvam tudo. E a escuridão da noite invade o espaço.

"Embora às vezes o primeiro amor cauterize o coração e a única coisa que quem procurar depois encontrará seja tecido cicatricial". Julian Barnes em "A Única História"

É então, que na hora mais negra, o orvalhado das lágrimas recobre todo o espaço, todas as superfícies e eis que desponta a luz. O sol se projeta no horizonte e rapidamente toma conta de tudo, aquece tudo que era frio. Apresenta claramente tudo que é. E prepara o campo para um novo dia. Resseca as lágrimas das folhas. Recobre a floresta com a promessa de um novo ciclo. E com ele, uma nova possibilidade de vida.

Seus primeiros passos no relvado macio, o farfalhar dos pés entre as folhas secas. A ressignificação do mundo que venho cultivando. A ponta dos dedos nas folhas balançando nos galhos mais baixos e o olhar perscrutando o horizonte enquanto o vento acaricia seu rosto. O braço que se estende e colhe o fruto, o leva à boca e dele suga o sabor e também o nutriente. Tudo isso sou eu, é o meu mundo interior.

E então chega ao centro dessa mata, na fonte de onde brota a água que corta esse relevo. A água que corre, cria riachos, irriga o solo, escorre e mantém tudo vivo. E como um sentimento — que impele a ficar — dessa fonte brota constante, incansável e pujante. Inicialmente um mero visitante, um nômade. Até que resolva fazer desse lugar uma morada, construir nele o seu viver, firmar raizes. E como os primeiros homens do Crescente fértil, aproveitar esse solo suscetível, plantar e colher. Viver e se alimentar dessa terra. Mudar a geografia e torná-la ainda mais acolhedora e provedora de vida. E assim como os primeiros agricultores, resolva fazer morada e aqui ficar. E aqui fundar uma civilização.

“Eu não era uma pessoa, era um lugar. (…) se ficar no Sonhar, me visite. Caminhe entre meus prados e clareiras verdes. Descanse debaixo das minhas árvores.”

Verde do Violinista, em Sandman

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